De quem é a culpa?

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Resumo de uma vida de todos os dias

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: Waiting On An Angel (Ben Harper), ao pé do ouvido.


Deitado no sofá, ouvindo Ben Harper. Você gostava de Ben Harper, fechava os olhos e sentia os acordes de cada canção entrando e saindo lá do fundo, eram suas bênçãos. Os cabelos jogados sobre o rosto. Mas eu sabia como era seu rosto, eu o adivinhava perfeitamente mirando-a pelas costas. Às vezes eu chegava no final da tarde e você já estava ali, no meio da sala, luzes apagadas, desligada para tudo o mais, só existia para aquele tom, aquela melodia que saía das caixas de som, ocupando todo o espaço ao redor. E eu não a interrompia, era o seu ritual sagrado. Eu esperava pacientemente. Eu admirava o pequeno cômodo transformado em simples altar, sem ícones, e você sentada no chão, no chão frio de azulejo, pernas dobradas, mãos nos joelhos: seu momento pleno e único. Waiting On An Angel. Você dizia que esse era o resumo da sua vida de todos os dias. Porque todos temos as nossas vidas e, além delas, a vida de cada dia. Às vezes você chorava quando acompanhava o refrão, entretanto era um choro de criança feliz, e eu ficava também feliz.

 
Outras vezes, quando eu aparecia à frente de casa, você já se encontrava parada no degrau da porta. Sorria para mim, aqueles dentes meio escondidos e cândidos, o olhar terno de quem parecia ter compreendido o mundo e não se importava com isso. A fadiga do trabalho ia embora no segundo seguinte, eu me sentia leve e sorria também. Sentava a seu lado, punha a cabeça em seu ombro, segurava sua mão e ficávamos os dois como se fôssemos um apenas, e você balançava e me levava junto no ritmo e esquecíamos o barulho do tráfego, os vizinhos, esquecíamos nós mesmos perdidos naquele degrau. Pois todos nós deveríamos nos ver assim, perdidos numa imensidão de sensações, sem pensamentos. Você fechava os olhos como sempre, eu deixava os meus abertos para você. Que o tempo flua, você dizia, que o tempo nos deixe aqui, que o tempo nos deixe para trás para nos encontrarmos, você dizia. Eu repetia aquelas palavras, eram a minha catequese, a nossa oração.
 
Ainda aqui, Ben Harper e eu. Espero pelo anjo, o anjo que sempre me levava para casa. Esta não é a minha casa, não mais. Espero compreender e esquecer o mundo. Espero você à minha frente. Apago as luzes, mas o altar está vazio. Que o tempo flua, eu digo, e o templo não flui. Que o tempo me deixe para trás para encontrar você, e não a encontro. Somente Harper e eu.

2 comentários:

  1. Não Estás só! Muito bom!

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  2. Um exemplo fabuloso de inspiração. A delicadeza com que Marlon interpreta os pequenos vazios da personagem... dá a impressão de se ouvir acordes muito sutís por trás das linhas.
    Genial.

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