De quem é a culpa?

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

"Nunca te vi, sempre te amei"

Trilha sonora: Pra dizer adeus - Tony Bellotto e Nando Reis.

Era apenas uma consulta médica para ratificar o problema que eu já sabia. Afinal, preciso de uma guia de exames e uma receita para conseguir, na farmácia, um desconto nos medicamentos.
Mas meu médico – meu não. Eu e o meu sentimento de posse – o médico deduziu que eu deveria ter mais alguma coisa.
- Não vou te dizer nada antes dos exames, mas acho que não é só o esôfago.
Realmente não precisava dizer mais nada. Cheguei a ver o quão os olhos dele brilhavam ao me dizer isso. Não sei. Mas acho que os médicos sentem mais tesão em diagnosticar as doenças ao tentar tratá-las. É a profissão deles...
Cheguei em casa meio deprimido e pensei em conversar sobre com meu pai, mas desisti porque ele iria dizer que “a culpa é do Zé Mané do Lula e dos ordinários do PT”. Ele só pensa nisso. Minha mãe iria dizer que já havia me dito. Ela sempre fala isso. E mais, que é pra eu parar de tomar Coca-cola.
-Mãe, dei uma topada e esfolei a cabeça do dedo.
- Para de tomar Coca-cola! Já te disse.
Parece uma ideia fixa. E ela ainda não sabe o que eu tenho nem que eu gosto mais de Soda.
Finalmente chegou o dia dos exames. A auxiliar de enfermagem – nada contra os auxiliares – me encaminhou primeiro para a endoscopia. Ora, eu disse que não tenho nada contra, mas todo mundo que já fez esse exame sabe como é o pós dele.
- Não, querida, primeiro a ultrassom depois a endoscopia.
- É mesmo. – Foi tudo o que ela disse.
Na sala, o médico aplicou um gel frio na barriga e passou um aparelho que fazia cócegas.
- Olha. Tá vendo?
- Vendo o quê, doutor?
- Ali ó!
Fiquei olhando para um monitor que aparecia uma luz em trapézio que focava bolhas estranhas.
- Dá para ter uma ideia. Se a imagem fosse em 3D, doutor, talvez...
Mas resolvi entrar no clima. Entrei tanto que, olhando a sala verde com aquelas luzes brancas e lençóis azuis, me senti numa daquelas cenas piegas das novelas do Manoel Carlos. Me reservo o direito de omitir o nome do hospital para não caracterizar merchandising.
- E aí, doutor, é menino ou menina.
- Meninas.
- Por isso que sentia enjoos. Quantos meses?
- Novinhas, Novinhas.
Olhei pro lado e senti uma lágrima escorrendo. Pensei em pegar na mão da auxiliar, mas ela estava com aquela máscara cirúrgica e fiquei imaginando o que havia por trás daquilo. Lembrei do Pica-pau quando perde a odalisca para o Zeca Urubu. Resolvi não arriscar.
- É cirúrgico!
Eu entendi cesariana. Ainda estava no clima.
Saí da sala extasiado e senti falta da família e das flores.
- Senhor! Senhor!
- Nossa! Você fala igual aeromoça.
- Senhor, vamos fazer a endoscopia.
- Putz!
Depois do exame, encontrei uma ex-aluna que queria que eu lembrasse de coisas. Sempre aparece alguém, não necessariamente um conhecido seu, mas que te conhece, após este exame, que te pergunta coisas.
No retorno ao gastro para marcar a cirurgia, tirei algumas dúvidas importantes.
- Quando vou poder beber de novo, doutor? Posso tomar caipirinha escutando Led Zeppelin? Amendoim tem gordura?
Quando acordei após as “facadas”, havia uma auxiliar, sempre com aquela máscara, – percebi que isso me incomodava – com um comprimido na mão e um pingo de água no copo. Minha sobrinha, que deveria me fazer companhia, me abandonou para ver Tititi. Perdi para o Jacques Leclair.
No dia seguinte, quando recebi alta, insisti em perguntas:
- O que o senhor fez, doutor?
- Tirei duas pedras da sua vesícula. Ah!... Tirei sua vesícula também.
- Posso beber?
- Não.
- O quê? O senhor tirou a minha vesícula?
Foi neste instante que percebi que tinha vesícula (ou que já não tinha mais). Minha relação com ela foi muito curta e isso me deixou um tanto intrigado. Todo mundo fala dos rins, do fígado, do coração, mas da vesícula só meu médico – olha eu de novo com a posse.
- Qual era a função dela, doutor?
- Acumular bile produzida pelo fígado.
- Hum...
- Posso beber?
- Não!!!
           Fiz cara de quem estava entendendo tudo e lembrei de que “lá onde cruzo com a modernidade e meu pensamento passa como raio, a pedra no caminho é o time que você tira de campo”.
           Tá! As pedras eu tirei. Mas, por que a vesícula?
(Fabio Castro)

11 comentários:

  1. Gostei muito, adoro as paranóias se sobressaindo entre criador e criatura. As boas crônicas são assim, tiram do dia a dia poucas e boas. Parabéns.
    p.s: Zeca urubu foi demais.

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  2. Fabinho idéia fixa ¨Doutor quando posso voltar a beber?" - me poupa!!
    do amigo HENRIQUE

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  3. Bom, eu entendo porque a idéia fixa...

    Grande texto, mano. Grande estreia em crônicas!

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  4. Adorei , nunca ri tanto de paranóia pela perda de um órgão, demais , te cuida LFV ( ? ) Luis Fernando Veríssimo.
    Cynthia Segtowick

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  5. Boa crônica, acho na vida vivemos cercados de auxilares,cujas expressões desconhecemos, malditas máscaras!!!!!Parabéns !!!Agora nas rodas de boemia posso afirmar que tenho uma amigo que escreve crônicas!!!

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  6. Marcos Nahmias

    Fábio, muito bom seu texto, com personalidade e estilo. Adorei. Com reservas para a pieguice de Manoel carlos. Adoro ele e o Leblon. rsrsrs. Parabéns, espero mais textos.

    abs

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  7. Formidável!
    Tá vendo só, costurado? Nem doeu!

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  8. No monitor do ultrassom não dá pra ver nada, nem os médicos veem. Ri muito com esta crônica,e o dia em que podemos voltar a beber é sempre a maior preocupação. Renan

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  9. Esqueci de dizer que achei genial ter lembrado do pica-pau e da odalisca. A benção, meu irmão.

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  10. ela foi tirada pra que o médico pudesse fazer seu contrabado de vesicula tranquilamente! dizem que agora com o dolar baixo ja nem fazem mais tanto sucesso!

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  11. Professor essa é fantástica!!! ri bastante, fiquei imaginando esse seu jeito sério escrevendo essa crônica!!!!! Parabéns!!!

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