De quem é a culpa?

domingo, 28 de setembro de 2014

Salada da Lagartixa

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: buzinas, pássaros e ventos encanados.


Das miragens de edifícios sujos, dos poemas escarrados por baixo das mesas vem um hálito ácido da prontidão de deuses a coçar a bunda e a mastigar futuros de boca aberta.

A mão dispara a pedra sobre o lago e um reflexo torto se forma da carranca bruta sobre a água, agora mais espessa, a pedra salta e outra vez salta, despedaça o sol, desconstrói o dia duas, três vezes, então afunda num mistério líquido que sempre ali está, à beira de toda alegria, de todas as dores, de toda certeza.


Um berro chega ao meio-dia. Um riso chega ao meio-dia. Uma carta de amor chega por baixo da porta, e as sombras jamais são perfeitas aos olhos de uma lagartixa.

sábado, 6 de setembro de 2014

Simulacro (Amor)


Dede tempos de imemórias que me restam assustadas debaixo da cama vou pesando, vou pisando nos meus calos e temperando efeitos nucleares.

Desde a música nos subsolos desde as trompas e os falópios vem matéria escusa e quente acumulando-se entre os dedos de carbono saturado insaturado eclipsado hibridizado escarrado pela vida inteira imensa de uns segundos poucos.

Desde a quinta série que te chamo pra sair e me respondes com silêncio evacuado incinerado bem medido grão a grão enquanto expiro espinhos da carcaça minha espessa.

- Me liga mais tarde.
- Anrãm.

domingo, 20 de abril de 2014

SENHOR, QUAL É?!?!? (POEMA DE DOR MESMO...)


Trilha sonora: Bob Dylan, It's All Right Ma (I'm only bleeding)


Senhor, explique-me
que porra de dor é essa!

Que dor é essa que arranca
as cores do meu cérebro
que torna meu passo arrastado,
minha respiração curta
e que me faz buscar
esperança na farmácia
financiada no cartão de crédito?

Na falta de alívio
apenas explique-me
o que é essa dor toda
que vem de algum lugar
que sou eu mesmo...

Mas não, (por favor!!!):
não dê a ela um sentido
pois “sentido” é direção
e lógica
e não quero uma lógica
    para o sofrimento
nem uma direção pra mim
pois, porra, eu já cheguei
        até aqui!

Senhor, que paciência
tu queres que eu tenha?!?!?!
Tu sabes, eu não sou Jó!
Eu não fiz tudo o que eu queria
minha felicidade não é completa
e eu já sei o que é
perder tudo e recomeçar...
Senhor, eu não sou
um servo exemplar, então,
Se toca, não há demônio
        que justifique!

E não, não me ponha
na frente da TV
para ver canecas falantes
    chimpanzés intérpretes
    robôs confidentes
    e bonecas aromatizadas!

Tá bom, então não faça nada!
Só me deixe aqui suando
e torcendo minhas mãos...

Deixe-me aqui
esvaziando minha mente
para que ela não lembre
        meu coração
do peso de tudo
o que ele ama.

(Renato Gimenes)

sábado, 19 de abril de 2014

POEMA DE PÁSCOA

(trilha sonora: Bob Dylan, Tomorrow is a Long Time)


Então já são dois mil de ressurreição?
Então já são dois mil anos
daquela ascensão?
Então a espera já dura dois mil anos...

Seja como for:
nos foi deixada a responsabilidade
de sermos felizes enquanto esperamos
o que não tem data
o que termina o tempo
e o que o recomeça.

Se assim é
Somo às estes dois mil anos
o meu parco tempo
mais modestamente contado
de 365 em 365 dias
imperfeitos.

Somo a esta espera
minhas míseras muitas
mortes e ressurreições
estaqueadas em minh'alma:
minhas múltiplas mortes
vívidas nas minhas escolhas;
meus múltiplos lutos
fundadores de minha memória,
e minhas várias ressurreições
das quais eu só continuo um Eu
por mero hábito.

Sei
que em cada pequena ressurreição
me permiti rir e chorar de alegria
por ter trocado de pelo
por ter trocado de pele
e por ter girado minha alma
em um caleidoscópio de dor
de aprendizado
de música
e mesmo, eventualmente,
de amor por corpos
que me me abriram portas
para o desconhecido.

E, em cada pequena ressurreição
quebrei mais um limite
que eu julgava impossível ultrapassar
e, surpreso comigo mesmo,
ri e me alegrei
por ter produzido
entre uma Páscoa e outra
renascimentos seguidos
às minhas mortes cotidianas
trabalhando minha alma de cera
já tão crivada de mundo
insistindo
até que, um dia,
desgastado da alegria de renascer
meu corpo finalmente descanse
na cama da Terra
na cama das águas
na cama da Vida
enquanto outros anseiam
pelo Recomeço
do tempo.

(Renato Gimenes)

segunda-feira, 31 de março de 2014

LETTICIA SHOW (de Marcos Salvatore)

A partir do poema-fotografia "Persianas", de Fabio Castro.





Poucas palmas em Belém: algum lugar entre as duas e as três.
Mas a chuva dourada da Xeiro Verde respinga bastante. Justifica o nome da artista, seus classificados. Uma mulher famosa entre os pescadores fracos e oprimidos.
Ou eu amo Dor de Cotovelo ou me odeio com hora extra.
Agora, imaginem um viado preto, transexual, ex líder de gangue, evangélico dizimista, vegetariano, frentista trocador de óleo e brother, velho camarada. Se eu disser que, ainda por cima, essa bicha querida é fã de Agatha Christie, vocês não acreditariam.
- Ih, adoro. Já passou das sete doses, Bofe. Larga essa carta.
- Nove. Estou contando. Depressão tem muita cede, Vaca.
- Ave, esse chifre está charlando.
- Essa mulher bagunçou com a minha vida, porra. Não te mete.
- Humhum, eu hein! Vai acabar piorando, tá, meu bem?
- Problema meu.
- Então, se joga.
Essa Síndrome de Madame Satã ambulante é o Nildo, vulgo Letticia, meu melhor amigo de infância. Exemplo de que a cultura de uma geração não se transmite a outra.
Um artista performático da terra – se é que a madrugada do bairro do Comércio seja a Terra de alguém. É a minha. Assim como a concepção do espetáculo, o texto inflamado, enfim. Seu show de Clara Nunes é imbatível. Puro Almodovar com Liza Minelli.
Mas, preciso dizer mais uma sobre o Nildo: conhece trechos de Nietzsche de cabeça.
E, nesta noite, aqueles cílios adoráveis pagaram o maior sapo:  - “Aos 36 anos desci ao ponto mais débil de minha vitalidade: vivia ainda, mas sem enxergar um palmo diante de mim”.
Dobro a carta e a guardo no bolso da camisa, junto com o cigarro. Ainda dou um tempo para ver o Nildo cantar Retrato em Preto e Branco: - “Lá vou eu, de novo, como um tolo”.


E assim fui, do Biri Nights em direção à sopa (com ovo cozido). Janto e saio para uma saideira na escadinha da Feira do Açaí. Gosto de andar – herança de três casamentos.
Perto do Verol, com vista para o primeiro necrotério: morte antiga e sanitária. Jornalismo é aventura. Na Cremação os animais eram incinerados. Porém, acredito que alguns indesejados também viraram cinzas.
Sinto falta de uma trilha de rock, na veia e regional, logo, solicito uma trilha de Clube da Esquina para a travessar a pracinha do relógio e ir mijar no canto da farmácia.
De cara, uma magrela linda, cheirando a cola de sapateiro (reconheci o aroma), me pergunta se eu topo uma voltinha por um troco ou um completo. Liquidação!
Ora, todo bêbado passa por um processo de decomposição moral que puta que o pariu. Então, como um bom jocoso-conservador, cato a camisinha no bolso esquerdo de trás e parto para o crime.
Só demora uma esquina e uma Praça da Sé para a promoção da minha vigésima sétima surra pública dar resultados. O Nietzsche do Nildo daria alegre adesão a minha surpresa? Ela, por outro lado, eu já sei, diria: - “Tô passada, mas bem feito”.
Quem nunca foi jogado escadaria abaixo não tem noção do significado da restauração da inteligência. Penso: - “Será que isso é porque eu não sou mais partidão?”.


Já tinha enfiado na bundinha da pequena, marcadinha de carapanãs. Estava tão gostoso que a primeira pancada na cabeça me fez gozar na hora. O vento assoviava por entre as folhas das mangueiras centenárias. A mesma canção que soprou para um dirigível no passado. A gala escorria líquida e inocente na superfície do meu medo.
Tento esconder meu pau pinganolento. Cai o celular do meu bolso, tocando Mutantes. Apanho calado, ao som de “Vida de Cachorro”. Sou surrado desajeitadamente – uma sorte, devo admitir.
Antes da dor, penso: - “Se eu pegar no sono agora posso dormir direto - sonhar que estou feliz em outra cama com ela - e acordar no fim da linha do Che Guevera”.
Ainda vejo os canhões e conto todos os meus anos. Tarde demais para a insônia das ondas não ser despertada quando sou jogado.


Meu único mérito é saber perder. Então, perco e calo ao me tocar que a carta, última dela para mim, boiava em outra direção. Tudo acabado.
Sei nadar, mas não boiar. Enlouqueçamos, pois. Como diriam os Dzi Croquettes.
Quero que meu corpo inchado surja na enseada de um lugar com casinhas de paredes brancas. Brancas, não. Casas amarelas, com crianças ribeirinhas e tias catando piolhos.
Ser encontrado por crianças... Não, melhor virar comida de peixe e retornar vorazmente a uma origem. Signo em vida e em morte, alimento da raça. E renascer como um domador de cavalos.
O problema é que não acredito em raças. Nildo, também não.
Seria complicado uma cota para ele, não acham? Aliás, com tanto nome gay muito melhor, ele tinha que inventar justo aquele? Nome de menina de Nelson Rodrigues.
Não sei o nome da baía. Ninguém nunca me falou. 37 anos sem ouvir.


A correnteza me leva. Tento lutar, mas não consigo. Uma situação que vai tornando a existência da lua brilhante a favor das braçadas contra a corrente - mini puta de vertente em vertente - não fala por mim, mas observa - e, observado vou.
Meus braços doem. Não alcanço a beirada. Não consigo gritar. Sou puxado e desisto.
Lembro de um texto meu que a Letticia tanto gosta de trabalhar em cena, vestida de bailarina flamenca, com faixa da presidência do Cacareco. Acho relevante e o rezo para as estrelas:

“Oh, Deuses da pré-menstrual idade intencional
Sua sensualidade corrupta não me inspira mais
O que existia de sensorial nesta cidade sumiu
Foi incompatível com o bem estar da TPM estatal

Após encontrar minha própria fome hedonista
Após entreolhar por persianas, com ciúmes, sua demência
Dionisíaca com brancos, negros e índios a granel
Entrego-me a baia triste e sem filosofia

Pareceiros, desconjurados, espíritos dos bairros
Verdadeiros combatentes. Nós só fizemos merda!
Eu os saúdo.”

Sou flagrado roubando a atenção de um cachorro, lá fora - penso em refrãos de Jovem Guarda, Tom Jobim me agradaria - canção por canção não me interessa mais. Ele late.
Um cachorro vai me ver morrer, na espiral do silêncio. Vai saber.
(...)
Ou saberia, se não fosse pelo barquinho de pupunhas.



quarta-feira, 26 de março de 2014

Diabo do Agora

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: Hurt (Nine Inch Nails, mas na versão tristíssima do Johnny Cash.



É o dia, irmão.
É o dia que começa minguado
levanta cai
levanta
         cai
         e toda a realidade sufoca dentro de um saco de lixo.

É tudo sempre o mesmo filme em sépia
a velha escola do respira-expira
com uma garrafa de café extra forte à beira da cama
ou quem sabe uma bala de hortelã
pra fingir
pra fingir que ainda têm jeito
         aquelas cartas
         aqueles beijos
         aqueles caminhos
pra fingir que ainda têm jeito mesmo
         aquelas ligações não completadas
         aquelas palavras borradas debaixo da chuva
                 da vida esticada até se ouvir um estalo perfeito
                 ou o suspiro no final de um segundo.

Como dizia a molecada da infância quando queria
roubar doce na venda do velho no outro quarteirão
cheirar calcinhas nos varais
arrancar sangues e dentes nas peladas —
não esquenta que a hora chega.
Com lágrimas ou amanhã ou depois de amanhã, mas chega.
É.
Só que esquenta sim, irmão
         fica pelando, pode crer.
O tempo é linear em quantas teorias calculadas
não aqui dentro
e aqui dentro é dia e noite
explosões e fissuras temperadas no caos.


É o diabo do agora que não bate à porta, irmão.

sexta-feira, 21 de março de 2014

quarta-feira, 19 de março de 2014

Janela Fechada (a partir do poema-fotografia "Persianas", de Fábio Castro.


(Trilha sonora: Deep Purple, Clearly Quite Absurd.)

Quantas vezes
trafeguei meu medo
por estas escadas...
A réstia de luz
entre as persianas:
bendito sinal
advindo da janela 
que, ao abrir-se,
abria-me
para o mundo
produzido
       em meio à tua fome
       em meio às tuas pernas
       em meio ao que existe
       entre os segundos
       e que se alastrava
       para muito além
       daquele último degrau.

Por quantas noites
trafiquei o meu amor
por aquela escada,
e trancafiei-me contigo
naquele quarto
feito das pedras
             e suas ranhuras
como quem se tranca
       do escoar do tempo,
       do instante futuro
             e do Mal,
em uma fusão
tão desesperada
de nossa carne
que homem
            mulher
pele
            cabelos
passaram a ser
distinções realmente inúteis!

Hoje
em comum
       com as pedras
tenho as rugas.

Hoje
em comum
       com as pedras
tenho a aspereza
típica
de quem sobreviveu
à catástrofe
      de uma intimidade
que se transformou
em uma esfinge
       sem segredos.

Hoje,
em comum contigo,
não nos temos:
fechamos
a janela.

domingo, 16 de março de 2014

Dos Diabos (inspirado na fotografia "Persianas", de Fabio Castro)

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: The End Of The Line (Metallica).


Dois passos. Um passo. Para. Olha ao redor. Calor dos diabos subindo a rua. Só resignação.

Caminha e caminha. Suor na testa, suor na nuca. Ajeita os óculos sobre o nariz, vira a esquina. Chega à casa velha e pensa que era onde não queria estar. Persianas na janela ao lado.

— Senha.

Uns olhos escuros.

— Senha?

As persianas não falam. Uns olhos vão e vêm. As persianas não falam.

— Ahn. Ahn. Treze?

Uns olhos vão e vêm. As persianas não respiram.

— Pode subir.

Olha para frente, acompanhando e medindo a passagem. A escada no final. Alguém acena do último degrau. Ninguém mais. Um passo. Dois passos. Vai de pouco em pouco, encarando o fim. As persianas observam.

— Três. Quatro. Merda. Cinco. Seis.

Alguém abaixa o braço e aguarda. Depois acena novamente. Algo longo levantado bem alto na mão. Alguém sacode e balança o objeto acima da cabeça. Alguma empolgação.

— Sete. Oito. Ah, merda. Nove. Dez.

Alguém agora dá pulinhos. Risos. Pulinhos, risos.

— Não tenha pressa. Sem problema.

Continua, continua. Calor dos diabos aumenta, então vai tirando a camisa, não suporta mais. Tira o cinto, a calça, os óculos. Mais resignação. Fica nu e não se importa mais. Calor dos diabos pelo corpo inteiro, pelo mundo inteiro.

Alguém segue pulando de um lado a outro. Risos e fungadas, mais alto, mais alto. O objeto longo brilha acima da cabeça e brilha outra vez. Só empolgação.

— Venha, pode vir. Pode vir.

Bolhas na pele enquanto chega ao fim da escada. Bolhas estouram, bolhas nascem, bolhas vazam. Agora de joelhos sobre o chão, calor dos diabos, cabeça baixa, olhos secos. É agora, pensa. Alguém levanta o objeto mais alto. Mais brilho.

As persianas lá embaixo.


Mais um que vira a esquina. 

terça-feira, 11 de março de 2014

Persianas

                                                                                        (Por Fábio Castro)
                                        Trilha Sonora: Retrato em branco e preto - Tom Jobim.