De quem é a culpa?

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O primeiro casamento a gente nunca esquece

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: I Feel Good (James Brown)


Já fui casado.

Eu, que até hoje não pus uma aliança no dedo. Nem me lembrava disso, faz alguns poucos anos, mas aconteceu. Pelo menos foi o que uma amiga me disse. E fui casado por cerca de trinta segundos.

Antes que alguém pense que eu fiz alguma insanidade como encher a cara e arranjar a primeira garota que passasse pela minha frente, arrastá-la para dentro de um avião e levá-la ao altar de alguma capela vagabunda em Las Vegas, deixem-me contar a história. Não precisei ir tão longe. E a coisa toda saiu bem mais barata.

The Beatles, um barzinho de esquina em um bairro perto do centro da cidade. O nome é, sim, uma referência gritante aos quatro lendários de Liverpool, bem como a decoração, cheia de capas de vinis e pôsteres do grupo de rock and roll. Rafaela e eu, numa noite de sábado, conhecendo o local pela primeira vez, buscando um novo panorama para diversão. Música boa, embora fosse uma miscelânea de sons diversos, bem diferente do que eu tinha imaginado. E agora é que vem o maior detalhe de todos.

Os banheiros masculino e feminino são fora do bar. É necessário contornar o estabelecimento e entrar logo ao lado, em um corredor curto para chegar a qualquer um deles. Uma porta para cada um. O masculino era um cubículo de 1,50 m por 1,0 m apenas com um mictório que, na verdade, não passava de uma canaleta feita de azulejos atravessando duas das quatro paredes. Imagine um cubículo de 1,50 m por 1,0 m. Como nossa imaginação às vezes nos engana, provavelmente você terá de encolher um pouco mais esse banheiro em sua mente. Isso, assim ficou melhor. Continuando.

Era a segunda ou terceira vez que eu precisava ir até o banheiro me aliviar. Para quem bebe cerveja, sabe que, após a primeira visita ao toalete, é certo que voltará lá seguidamente. Deixei a Rafa sentada à mesa e voltei para lá, já sabendo que a porta não fechava, só podia deixá-la encostada. Foi o que fiz, e me aprontei para ficar de costas para a entrada do cubículo.

Estava no meio de meu exercício fisiológico quando ouço a porta: nnnhhhééééééééé-éééé-ééééééé. Até aí tudo bem.

Então surgiu uma voz de mulher. No banheiro masculino. Pedindo desculpas e para que eu não olhasse, por favor. Não deu outra — olhei de lado para me certificar de que era isso mesmo que eu tinha entendido. Uma mulher. No banheiro masculino. E eu ainda não tinha acabado o meu exercício natural. A garota era bem bonita, corpo torneado. Eu disse tudo bem. E ouvi o motivo da invasão.

“Não sei por que essa mulherada demora tanto pra sair do banheiro.”

Boa pergunta. Alguém aí pode esclarecer esse mistério feminino?

Foi então que se deu o ato.

Agora preste atenção. Preste muita atenção, porque isso é o tipo de coisa que costuma acontecer possivelmente só uma vez na vida, e para muitos, nunca irá acontecer. Então leia bem o que vou dizer.

Ela se abaixou, arriando a calça jeans e a calcinha até os joelhos. Ao lado da porta. Atrás de mim. E fez o mesmo exercício fisiológico ali. No chão do banheiro. No chão. Do banheiro. Terminei o que estava fazendo, fechei a braguilha da minha calça e fiquei sem saber como agir. Olhei de lado novamente. Calculei que seria impossível abrir a porta sem passar por cima dela, ou sem expô-la, naquela posição tão íntima, às pessoas que esperavam sua vez lá fora.

Fiquei parado, tentando não olhar. Não havia condições de não olhar, é óbvio. Mas procurei manter discrição o máximo possível, aguardando o desfecho da cena.

Por cerca de trinta segundos aquela mulher me dominou por completo, sem ela própria saber. Eu não tinha como escapar da armadilha, embora não estivesse reclamando. Apenas da poça que ela deixara no chão, mas isso acabou sendo um detalhe tão mínimo que nenhum homem, em meu lugar, poderia levar em consideração.

Já vi mulheres praticando o ato natural de evacuação urinária naquela posição, isso não é nenhum segredo. Porém foi a primeira vez que uma total desconhecida me concedeu este privilégio (provavelmente a palavra certa não é esta, mas vou deixá-la como está).

Finalmente ela se levanta, não sem antes dar duas ou três chacoalhadas com o quadril, e se vestir novamente. Agradeceu a minha paciência, eu disse que tudo bem, sem problemas, e saímos. Realmente não houve problema algum, talvez um leve constrangimento, embora nenhum dos dois tenha demonstrado isso. Ela voltou para uma mesa com uns amigos e eu segui de volta para perto da Rafaela.

E é claro que lhe contei o episódio. Depois de arregalar os olhos, gargalhar alto e balançar a cabeça algumas vezes, ela deu a sentença: eu fui casado com aquela garota. Fiquei sem entender no momento, então ela me explicou melhor. Se fui dominado por ela daquela maneira, agachada e despida da cintura para baixo, dentro de um banheiro público, cometendo um ato tão íntimo, o qual normalmente não se compartilha com qualquer um, sem nem mesmo saber o seu nome, é difícil imaginar uma situação diferente da de um casamento.

Bom argumento. E também uma boa forma de se comprometer sem ser comprometido.

Mas preciso fazer uma reclamação de última hora para minha esposa, que muito provavelmente nunca lerá isto. Você não me disse quem era, o que fazia ou onde morava, e isso eu posso até compreender e aceitar. Só que sem preliminares não dá. Cadê o jeitinho?

Um comentário:

  1. cara, fiz uma postagem-comentário-homenagem ao seu texto lá na Toupeira, sugerindo o que seria uma trilha sonora alternativa para sua história.

    Abraços, meu velho.

    Link: http://atoupeiracava.freehostia.com/2010/11/05/toupeira-n-rock-especial-elbow-grounds-for-divorce/

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