De quem é a culpa?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

“BATA-ME, PELO AMOR DE DEUS” (de Bosco Silva)

A CONFRARIA
“O pênis é a menor distância entre duas almas”
Marquês de Sade
Havíamos criado uma confraria, uma irmandade, a Confraria dos Poetas Libertinos. Que abrigava alguns dos mais pervertidos de nossa época. Dedicávamos incessantemente a essa grande arte, já quase esquecida, minada pelos problemas econômicos e religiosos, mas que a tanto custo se mantinha viva, embora houvesse perdido muito em qualidade ao longo de tanto tempo: a grande arte da foda.
Fazíamos jus a cada gota de esperma, a cada estocada bem metida, a cada gota de suor expelida, como havia nos ensinado o grande Marquês de Sade. Nossa irmandade se encontrava uma vez ao mês para botar não apenas a grande arte em prática, nos melhores e piores puteros que conhecíamos, como para contar as mais libertinas e devassas histórias, embaladas ao mais doce vinho. Um verdadeiro culto à Baco, a esse Deus tão jovial e ao mesmo tempo tão esquecido, perdido entre as coisas consideradas antigas.
A libertinagem naqueles tempos era levada a sério, como nos saudosos tempos bíblicos. Lá se encontravam Petrúquio, o “sagaz”; Martinho, o “libertino”; Márcio, o “espirituoso”, e assim, como tantos outros, modelos que fazem tanta falta aos dias de hoje.
Uma noite no bordel...
- Ao sabor deste maravilhoso vinho, neste templo sagrado à luxúria, após uma maravilhosa orgia, companheiros, contem-nos suas aventuras, suas histórias mais pecaminosas, que poucos mortais contariam com orgulho – disse-lhes Petrúquio, já bastante embriagado pelo doce sabor do vinho.
- E tu Petrúquio, não terias uma boa história a nos contar? – disse Edgar.
- Como todo bom e velho libertino, mas não antes de abastecermos nossas mesas novamente com este maravilhoso vinho.
Taverneira, não vedes que temos sede, não apenas de vida, mas também de vinho? Então, sirva-nos sua maldita – gritou Petrúquio.
Após alguns goles, e enxugando as gotas de vinho que lhe escorria pela barba com a manga da camisa, pôs-se a relatar sua história:
- Havia alguns anos que não encontrava um velho amigo, exímio apostador e um grande libertino. E por acaso, encontrei-o numa noite na rua.
Convidou- me, então, para tomar alguns goles de vinho. E como um bom jogador, após relembrarmos algumas aventuras, pôs-se logo a fazer mais uma das famosas apostas suas.
Disse-me: “Aposto que não és mais capaz, oh! Petrúquio, das nossas velhas aventuras. Tens ainda coragem de entrar num puteiro, ludibriar, e fazer com que a puta não lhe cobre?”
Confesso que a muito tinha perdido a prática em tal ato, mas não pude, de modo algum esmorecer. Disse-lhe, então: - Vamos, escolha o bordel e a puta.
O bordel escolhido foi de Madame Nise, antiga cafetina, mulher avarenta e extremamente rígida, como uma madre superiora. A escolha não podia ser pior.
Todavia, o que a princípio parecia ser péssimo, piorou, ainda mais, quando também ela foi a escolhida.
Nise, mulher elegante, de finos modos, mas que aparentava ser fria, como aquelas putas que fornicam com o olho no relógio.
Levei-a, então, para o quarto... Parecia que tinha esquecido a muito o prazer em sua memória.
Tratei-a ora como uma verdadeira dama, ora como a mais devassa das putas, pois, como sabêis, na arte do amor, deve-se tratar uma puta como uma dama, e uma dama como uma puta. Eis um segredo infalível!
Pois bem. Chupei com avidez seu clitóris..., masturbei-a incessantemente..., beijei-a até mesmo onde a luz do sol não a clareia..., mas nada parecia ser o bastante. Penetrava-lhe, então, com ardor em sua vagina..., mas ela continuava fria, como uma morta. Tentei de tudo que a uma boa ou má mulher excitaria, pois, lembrei-me que mesmo uma puta haveria de ter seus caprichos. E que agradando-a, talvez, me recompensaria com uma noite gratuita.
Em um dado momento, já desesperado por nenhuma resposta, dei-lhe pequenas tapas, como forma de desabafo, que estalavam em seu rosto gorduchinho. Ela, para minha surpresa e felicidade, sorrindo, imediatamente, começou a implorar-me:
- Bata-me... bata-me... pelo amor de Deus, bata-me...
- Ah! Safada - exclamei pensativo.
E enquanto mais me pedia, mais eu intercalava com a ausência de tapas, o que me dava um prazer enorme em provocá-la, e ver lhe suplicar-me. O que, por outro lado, certamente, mais lhe excitava, implorando por tapas cada vez mais fortes.
- Mais... mais... mais... – então, dizia.
As tapas, os sorrisos, seu corpo na fúria louca do desejo, iam num crescendo que parecia não terem fim...
E, enfim, realizando seus desejos, acabei por desmaiá-la, em um misto excitante de prazer e dor, por meio de tantas tapas.
E saindo de lá como entrei, com os bolsos sem nenhum níquel, não apenas ganhei a aposta, como a lembrança de uma de minhas melhores memórias.
Petrúquio, em seguida, em meio a tantos risos, levantando-se da mesa, pôs-se a declamar o Soneto de todas as Putas de Bocage, tendo na mão, levantada, uma grande taça de vinho:
Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta d’um soldado;
Cleópatra por puta alcança a coroa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:
Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.
- Ah! Bocage que seria dos poetas sem as putas – exclamou Petrúquio.
- E nada seriam das putas sem os libertinos! – completou Márcio.
- Um viva, pois, a estas verdadeiras discípulas de Vênus, a estes seres tão desprezados, outrora tão cultuados, e que, ao contrário das hipócritas virtuosas, fazem tanto bem à sociedade, pois quantos estupros não têm evitado!
Após o imenso murmúrio que se seguiu às palavras de Petrúquio, com os convivas ora aplaudindo, ora gritando: viva as putas, viva as putas... disse-lhe Márcio:
- Então Nise era uma masoquista?
- Quanto a isso não há a menor dúvida.
- Assim como não há a menor duvida que és um sádico – completou Márcio.
BOSCO SILVA: http://cerebrau.com.br/

Seu Pai, Sua Mãe.... (de Paulo Emanuel)

Música: Que bonitos olhos tem, esse seu lindo rostinho. (Franquito Lopes)

O carro vinha em alta velocidade quando de repente saiu de trás de uma árvore um guarda tocando uma barulhenta sirene e o mandou parar.
O guarda disse que ele havia passado do limite de velocidade que era de oitenta quilômetros por hora.
O motorista engoliu seco e disse que estava com pressa por que tinha que chegar à fazenda da sua irmã, por que a vaca "Sua mãe" iria dar cria.
O guarda irritado com a explicação, disse que se ele insistisse com aquela brincadeira iria ser preso.
O motorista replicou e disse que, se não chegasse logo, a vaca "Sua mãe" poderia dar cria e ter problemas no parto. O guarda irritou-se mais ainda e disse que iria prendê-lo por desacato à autoridade.
O guarda o levou para a delegacia e o apresentou ao delegado.
Dr. Delega, estou prendendo este sujeito porque ele me desacatou chamando minha mãe de vaca.
- E como é o nome da vaca? Perguntou o delegado.
- Sua mãe! Respondeu o guarda.
O delegado retrucou.
- O senhor tá chamando minha mãe de vaca?
- Não, senhor. Gaguejou o guarda.
Antes de falar mais alguma coisa o guarda e o motorista foram colocados na prisão. Ambos por desacato.
Neste momento outro motorista em alta velocidade foi parado por um outro guarda e este o interpelou do porquê da alta velocidade.
O sujeito disse que estava com pressa porque o touro "Seu pai" estava com carrapato no rabo.
Como??? perguntou o guarda.
O "Seu pai" está com carrapato no rabo. Disse o sujeito.
Como ousa dizer que meu pai está com carrapato no rabo????
Teje preso. Insolente.
E o levou pra delegacia.
Lá chegando o apresentou ao delegado.
Dotô Delega. Estou prendendo este sujeito por que além de estar acima do limite de velocidade, ainda ofendeu meu pai.
Ele disse que o touro Seu pai está com carrapato no rabo.
- O delegado furioso disse:
- De novo????
- Como ousa dizer que o meu pai está com carrapato no rabo?
-Não seu delega, balbuciou o guarda.
É o touro....
- Como???
Além de dizer que meu pai tá com carrapato no rabo, ainda o chama de touro???
Teje preso!
E trancou os dois juntos com os outros dois no mesmo xadrez.
O Superintendente neste dia foi fazer uma vistoria na delegacia e quando viu aquele monte de gente presa perguntou pro delegado o que estava acontecendo.
O Delegado disse:
É o seguinte seu super.
- Prendi estes elementos por que eles disseram que "Sua mãe" estava pra dar cria e o "Seu pai" estava com carrapato no rabo.
O quêêê????
Como ousa me dizer uma barbaridade dessas???
O senhor também está preso.
E trancou o delegado junto com os outros..
Aí chegou o governador que passava por aquelas bandas e quando viu aquele monte de gente perguntou pro superintendente o que estava acontecendo e ele disse:
Prendi estes elementos por que disseram que a vaca da sua mãe tinha dado cria e o rabo do corno do seu pai tava cheio de carrapato.
Nisso a confusão foi ficando grande e a cadeia foi ficando pequena.
Enquanto isso Sua mãe e Seu pai pastavam tranquilamente alheios a toda aquela confusão.

domingo, 26 de junho de 2011

ANIVERSÁRIO

(Trilha sonora: seleção de músicas de Chico Buarque)


O aniversário
veio
velho conhecido
cansado
amassado
abraçado
em meio
às felicitações trazidas
pelas letras amigas
na tela do computador.
Amor guardado
em memória elétrica.

Incomum dia comum
com gosto de café
e bolo
e riso
das filhas
e de roupa lavada
e do nosso amor
sonolento
e terno,
folha milimetrada
tatuada
de riscos
de trabalhos
cálculos leves
como fumaça
de incenso
de lavanda
isento
de peso
e pesado
de cheiro.

O aniversário me alerta
para os pelos brancos
que salpicam meu rosto
e sinalizam
eu-objeto
de garantia vencida
de prazo
- destino
o qual
cancerianamente
me aprazo.

(por Renato Gimenes)

terça-feira, 21 de junho de 2011

Bom dia, Outro Dia (de Marcos Salvatore)


Estou pronto para mais um dia
Antes tarde, noite má, drogada
Sua falta entrecortando o prazer
Depois igualdade desigual

Demasiado humano
Quando me saca melhor do que eu
Sinto a falta de não me entender
Me sentir, me ferir, me perder

Criado Mudo nº 07 (de Marcos Salvatore)

by Earl Hammie



... ou vincular



vendem-se boas intenções!
atividades passivas em bom estado
desapropriadas pela violência na televisão
compre absorvente, cerveja, sabão!

meu nome não é forte.
houve um tempo em que achei que vingava – mas não vinga.
pompoarismos depois,
guardo os aforismos genitais.

só não me chame de “bem”,
nem de “amor”
não tente se fazer de coitada
novamente, não

amanhã tem sábado
vamos lavar a boca, meu bem
um dia qualquer pra se viver
em rimas contraceptivas

ninguém para impressionar com palavras suicidas
afinadoras viciadas do piano pessoal
procuram um caminho claro de sol
projetos engavetados

férias,
feriados,
dias patrocinados
por michê barato

sinto a luta do meu corpo
tentando eliminar as impurezas
da noite anterior
posterior a esperança de satisfação motora

histórias de admiração mercenária:
contêm cenas de nudez capciosa
e o sexo frágil da “carreira”
onde o tesão descansa em paz

nem ódio nem amor; conexões
bandas largas de entendimento
compreensão, atenção,
incenso para insensíveis

estranho fungo esse negócio
e é sempre extrema qualquer busca
e acredito que todas as buscas são extremas
difícil tocar sem poder ver, então a gente cheira

algo termina sem ter começado
e já não me assusta
aprendeu-me, a minha fumaça
no banco de trás de uma van

lá pelas três da manhã

sem grandes pretensões
sem carnaval
sem árvores de natal
só o balancê, um rolê de autossugestão

um espelho que muito ou nada reflete
reflexo na água... lagoa envidraçada
produzida e arranjada tatuagem
de canais fora do ar

mais uma banda acaba
sem ter se apresentado
por jamais ter aprendido
a se ouvir, eu duvido

faço questão de um propósito
nem aqui, nem lá
gente, não ser humano
não transo extra por glória

como perder a memória?
como não lembrar do presente,
do passado, do futuro,
das alucinações?

quando tudo é levado ao cansaço
e damos cabo do amor que não tivemos
tudo o que é coerente se dilui
fica a razão num sono profundo de cura

o sono e um “beijo” de boa noite,
de perdão coloquial, de língua presa
é um mergulho em praias verdadeiras
um coração: virgens de alma - é o que lemos e somos

bom, pelo menos tentamos
depois emprestamos, cobramos
perdemos os vincos
a hora de dormir

um desejo triste, masturbador senil
fome: todos os desejos são tristes
uma soma de privações e renúncias
amor e ódio, fadas masoquistas.

queima de cartas de amor, compaixão, inquietude

e a ânsia da água antes da sede,
é a busca da sorte amarga e dura
da insensatez com que o espírito procura
ser punhal, ser lâmina, ser corte.

melhor não saber nunca da insônia, essa mulher
dos segredos de uma noite que não sonha
dar fim a tudo não é?
o que sufoca mais em você?

não há veneno para o mal
nem remédio para o bem.
quem sabe ir mais fundo que a moral?
chegar tarde aonde nunca foi ninguém.

o que mais dói em você?
e se dói você saberia o porquê?
até as angústias têm a sua
têm o lar e as razões de ser o que são

mas só as vi passar, cruzar por mim.
acenei para elas... e elas para mim

espelhos. reflexos, uma sombra sensível nos persegue
fácil julgar uma sombra, uma sombra
difícil julgar a si mesmo uma sombra
pois é de nós que passamos que ela se ergue.

e aqui está, acredite
por favor, nesses clichês emocionais
é o que tenho pra dar,
é o que eu sou aqui e lá fora

um apaixonado, um viril
no prazer e na dor inumana
tentando te provar, te assimilar
ao cair de boca no poder da sua flor

fruto real
da primeira gaveta
deste criado mudo

leal criado mundo

depois desta canção (de marcos salvatore)

by Hina Aoyama


Voltei correndo
arrebatando, tropeçando
pra correr com a reação
da tua chegada
imagina, dá um jeito
arco-íris, chuva e sol blefando
o dia, a madrugada a me fazer
feliz como eu queria te fazer
Valeu pela saudade, eu tô aí
capaz mesmo, além do jogo
copas marcadas do baralho
Pra trafegar pernas e braços
num abraço que nos faz sorrir
senha que é de graça
Até chegar onde eu preciso te salvar
Boca a boca pra transar um som
Alegria qualquer bem merecida
Antes-durante os compassos
Dos corações aos gritos
E das palavras de cada vez



quarta-feira, 15 de junho de 2011

O CARTEIRO - Parte II

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: Anger Rising (Jerry Cantrell).


         Com dificuldade levaram o corpo empacotado escada de emergência abaixo. M. ficara com a parte de cima, cabeça e tronco, já que era a mais pesada, facilitando o trabalho para C., que precisava se esforçar um pouco além da conta devido à perna que mancava. M. não perguntara nada a respeito daquilo, pois sabia que a chance de receber a resposta verdadeira da boca do parceiro era nenhuma.
         Verdade nunca era algo bem vindo naquele tipo de negócio.
         Chegaram ao andar térreo, caminharam com o pacote por mais alguns metros até virarem à direita em um corredor curto e acessaram outra escada que dava acesso ao subsolo. Ambos estavam ofegantes com o exercício forçado, porém tinham de seguir rapidamente com o plano. Havia prazo para a entrega. M. decididamente já não queria saber de prazos e defuntos, não ser mais uma espécie mórbida de carteiro, sem ao menos tomar conhecimento do que faziam com tantos corpos, e por isso iria se aposentar após aquela noite. O carteiro das entregas bizarras. Estava cansado demais.
         C. abriu o porta-malas, com o fundo forrado por uma grande lona plástica, de um carro acinzentado com todos os vidros escurecidos. Voltou e, juntos, mais uma vez levantaram a carga pesada no tapete para acomodá-la no automóvel. Entraram no veículo e o sujeito baixo deu a partida. O motor movia as engrenagens a um nível muito leve de ruído, quase inaudível. Dirigiu pela rampa de saída do condomínio, passando ao lado da portaria. M. não avistou o porteiro em canto nenhum, e ficou imaginando se havia uma poça de sangue também se esparramando pelo chão atrás de alguma porta por ali. C. acionou o portão da garagem com um controle remoto pendurado no quebra-sol acima do volante. Ganharam a rua com os faróis desligados, entretanto com o limpador do para-brisa funcionando. Ainda chovia levemente.
         Nenhum dos dois puxou assunto por um bom tempo. Embora fosse um trabalho ao qual estivessem acostumados, era sempre estranho levar um defunto para passear. C. não demonstrava qualquer tipo de sentimento por aquilo, de fato aparentava um total alheamento com toda a situação. M. puxou outro cigarro amassado do bolso da camisa e acendeu-o sem pedir permissão. O parceiro o olhou ligeiramente com o canto dos olhos, porém continuou silencioso na condução.
         Alguns minutos depois rodando pela noite quase deserta da cidade, um carro acinzentado com vidros escurecidos chegou ao cais do porto, onde estacionou perto do terceiro armazém de carga e descarga de navios, ao lado da calçada da avenida externa que margeava o amplo terreno de responsabilidade da alfândega marítima. C. mantivera os faróis desligados por todo o percurso, e só agora fazia três sinais curtos e um longo com eles, outro código de identificação previamente combinado.
         agora esperamos.
         M. não havia perguntado nada. A necessidade de expressar algo absolutamente óbvio só podia significar que, afinal, C. sentia-se incomodado ou impaciente, embora não quisesse explicitar isso para um desconhecido como ele. Um pequeno deslize, pensou M. enquanto perscrutava a escuridão através das gotas que constantemente caíam sobre o para-brisa.
         Alguns segundos mais e viram um pequeno portão ser aberto algumas dezenas de metros à frente. Era a deixa para que entrassem com o veículo no cais. Avançaram lentamente, passaram pela entrada, onde M. notou não haver ninguém visível, e estacionaram logo adiante, sob o teto de metal do que parecia ser uma varanda bastante comprida, construída ao longo do armazém. O barulho da chuva era bem mais alto ali embaixo, mesmo assim puderam nitidamente ouvir uma voz sobressair-se do fundo escuro da construção.
         podem sair. não liguem os faróis. deixem a chave no contato.
         Ambos desceram do automóvel, fechando as portas e procurando distinguir algum vulto no meio do breu. Essa merda não vale a pena, na verdade nunca valeu, pensou M., mas permaneceu parado sem abrir a boca, apenas forçando a visão. Sabia que não podia olhar para trás, pois qualquer movimento seria interpretado como altamente suspeito para aquelas pessoas. Não era a primeira vez que entrava ali, mas nunca conseguira ver o rosto de nenhum deles, e sequer tinha ideia de quantos eram ao todo. O que tinha certeza era que, sempre um ou dois minutos após a entrega, sua conta corrente no banco ganhava vários zeros a mais no saldo total. Uns imbecis detalhistas, contudo pontuais no pagamento.
         entrem aqui.
         Novamente os dois obedeceram sem falar nada. Enquanto davam passadas vagarosamente em direção à voz, ouviram alguém abrir e bater a porta do carro, e logo em seguida abrirem o porta-malas. M. não pôde entender o que ouvira depois disso, mas pareciam grunhidos rápidos de pura excitação animal. Este detalhe era novo, mas não exatamente interessante. Preferiu fingir por um momento que tudo no mundo a seu redor acontecia de modo perfeitamente normal.
         aí está bom.
         Pararam a caminhada, e foi quando receberam diretamente nos olhos dois fachos de luzes muito potentes e fluorescentes de lanternas. M. fechou instintivamente as pálpebras, porém manteve-se absolutamente quieto. C. agiu com maior surpresa, levantando uma das mãos contra o rosto e virando-o para o lado. Foi um deslize muito pior do que o anterior, pois ganhou um murro bem acima da boca do estômago, fazendo com que expelisse todo o ar dos pulmões e dobrasse sobre si mesmo para a frente, caindo de joelhos no chão de terra.
         esse aqui, pelo visto, ainda não se acostumou à nossa recepção.
         Outra voz, desta vez ao lado do companheiro caído. M. ainda tinha os olhos cerrados, mas ouviu, pela movimentação, que alguém ajudava o outro a se levantar.
         pedimos desculpas, mas temos que nos precaver. vocês entendem.
         Era exigência deles que sempre os profissionais agissem em dupla e fizessem a entrega juntos, mesmo um sem jamais ter visto o outro antes na vida. M. já se acostumara à recepção, bem como com os erros dos diferentes parceiros. Mas algo lhe dizia para tomar cuidado naquele momento. Existia uma sensação estranha no ar, uma sensação que não fazia parte do hábito.

(CONTINUA...)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Treze Horas, ou Poema Sem Motivo

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: Blues do Elevador (Zeca Baleiro).


são treze horas de qualquer dia
são treze horas de qualquer hora de sexo de embriaguez
                                de estupidez

são treze chagas de romance
são treze folhas de rascunhos líricos puros
                               de esconjuros

são treze falhas de humanidade
são treze milhares de longas perpétuas saídas
                               proibidas

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Achado II (Por Fabio Castro)

Trilha Sonora: Como dois e dois – Caetano Veloso.

Não quero exatamente

Que minha vida sentimental

Seja refém de mim mesmo.

Toque...

Desejo...

Sexo...

Amor...

Saudade...

Tornem-me refém

Ao concretizar meus sentimentos.


Achado I (Por Fabio Castro)

Trilha Sonora: Futuros Amantes – Chico Buarque.

Hipoteticamente falo de sonhos.

Hipoteticamente falo de amor

Nos meus sonhos.

Hipoteticamente vivo este sonho,

Não necessariamente o amor,

Mesmo hipoteticamente amando.

Hipoteticamente sinto saudade,

Momentaneamente sinto desejo,

Periodicamente vejo-me sofrendo,

E, hipoteticamente, sinto este amor morrendo.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Rude (Marcos Salvatore)

trilha sonora: mais feliz, bebel gilberto
meatrapa
lhei
coma
spalavrasque
você
medeuna
boca
asmigalhastuaco
midano
breabrigo
rudimentar
danov
elas
emlimite
quemecau
soume
se
meou-meca
ptouoa
final

quarta-feira, 8 de junho de 2011

ALTERAÇÕES NÃO SALVAS QUE SERÃO PERDIDAS (de Marcos Salvatore)



(...) quando chegaram dois amantes abraçados
se sentaram na escadinha do cais do porto:

pôr-do-sol, embriaguez, garrafas de vinho quente
campeonato de cuspe à distância
reunião com aliança em boa hora
átrio de bolas de sabão
- cuidam-se bem, cuidam-se bem

dois fora de alcance
atmosfera demais por não saber do que se é capaz
uma porção de problemas - um monte
é o mundo de ontem, lá fora, no mesmo alvoroço

entregues ao corpo

às palavras batidas ao vento
como um tapete empoeirado
de desejos e destinos separados

se isso existir mesmo
assim como Deus
ou aquelas alterações não salvas que serão perdidas

não alcançam mais um pouco de vida
ensinam a dominar a terra
pouco a pouco, demais por não se ter do que correr atrás
um melhor lugar pra se encaixarem

praça da república, domingo, toda a gente, capoeira, música, palhaços, teatro, feira de artesanato, quadros, livros, coisas antigas
bosques, tarde, caminhando descalços, queixos unidos à novidade da língua (...)


segunda-feira, 6 de junho de 2011

O CARTEIRO - Parte I

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: Down In A Hole (Alice In Chains).


         M. suspirou, ajeitou os cabelos com ambas as mãos e acendeu o cigarro amassado que tirara do bolso da camisa. Chovia uma chuva branda, daquelas em que só se percebe sua presença quando as gotas batem na janela surdamente, quase como um murmúrio do mundo lá fora. E por um brevíssimo instante imaginou que o mundo tentava ocultar a ele e ao que acabara de cometer, feito um cúmplice, mas era apenas um pensamento mesquinho, concluiu enquanto mirava o corpo desabado sobre o tapete que era manchado pouco a pouco de sangue no meio da sala.
         Tossiu três vezes e lembrou que devia parar de fumar. Sempre devia parar de fumar, mas que se dane agora.
         Ouviu duas batidas leves na porta de entrada do apartamento. Esperou alguns segundos, mais um trago de fumaça, mais duas batidas pouco audíveis. Era a senha do sujeito que viera ajudar a finalizar o serviço, embora M. não fizesse a menor ideia de quem seria. Não o haviam informado disso, mas não achava que era um problema. Quanto menos souber nomes naquele tipo de trabalho, melhor, foi o que aprendera ao longo dos anos.
         Contornou o conjunto de sofás, e enquanto fez isso notou que o morto estava com os olhos arregalados pelo susto. Não tivera chance de saber quem fizera aquilo com ele, já que M. havia chegado sorrateiro e a faca deslizou rapidamente por seu pescoço flácido. Procurou se debater enquanto agonizava, porém o assassino o imobilizara por trás de forma a esconder sua identidade. M. não soltara um único som durante o ato. Um profissional com muita prática no ramo, porém um profissional cansado.
         Aquela seria a sua última entrega.
         Abriu a porta e encarou um homem mais baixo do que ele, terno preto e engomado, gravata prateada e lustrosa. Por que alguém quereria chamar a atenção para si numa situação como essa M. não sabia explicar, mas não fez qualquer comentário.
         tudo pronto?
         ainda não.
         o que falta?
         terminar meu cigarro e empacotar.
         O sujeito não pediu licença e adentrou o apartamento olhando para os lados. Enquanto retirava dos bolsos do terno um par de luvas cirúrgicas, parecia caminhar com alguma dificuldade na perna esquerda. M. registrou o detalhe automaticamente, sem se dar conta. Era um instinto aguçado que jamais iria embora, mesmo depois de se aposentar.
         O sujeito inspecionou o local, enquanto calçava as luvas, com uma expressão clássica de especialista, ou seja, sem dar nenhuma importância ao que via.
         podemos aproveitar o tapete, afinal não é grande coisa.
         podemos, disse M. baforando mais um pouco de fumaça.
         O homem abaixou-se com algum esforço e um leve grunhido para começar a preparar o corpo, enquanto M. ainda se mantinha de pé, ao lado do sofá. Olhou novamente para a janela, os pingos deslizando e morrendo devagar sobre o vidro. Notou que o colega não tinha o terno molhado, porém não comentou nada a respeito naquele momento. Certamente iria dar a desculpa de ter usado um guarda-chuva, o que podia ser verdade, ou de uma capa que deixara fora do apartamento, o que podia ser também verdade. Fez outro registro automático.
         qual o seu nome?
         pode me chamar de C.
         M. tragou a última brasa do cigarro e jogou a guimba dentro de um vaso decorativo à entrada da sala. A despeito de tudo, ainda era um cavalheiro.
         vai me ajudar aqui ou ficar perfumando o local?
         tem um par de luvas para mim?
         C. desembolsou outro par de luvas cirúrgicas e o estendeu a M., explicando que gostava de ser bastante precavido. Era um detalhista, e falava isso com nítido orgulho na entonação da voz. Um babaca detalhista, pensou M. enquanto concordava com a cabeça e calçava uma das mãos.
         O sangue do morto praticamente já havia parado de esvair-se pela fenda na garganta, entretanto acharam melhor estancá-lo com uma toalha buscada no banheiro, amarrando-a ao redor do ferimento.
         não aperte demais esse nó, sabe como eles são exigentes com isso.
         na verdade não me importo com essas frescuras. sou eu quem faz o serviço sujo.
         O homem baixo continuou fazendo a sua parte sem olhar para o parceiro ao lado. Pelo visto, o sujeito não estava com muita paciência para coisa alguma.
         algum problema?
         o de sempre. sabe como é.
         acho que sim.
         Terminaram de enrolar o defunto no tapete e o carregaram até perto da entrada do apartamento, não sem antes enxugar a poça de sangue no assoalho do melhor modo como puderam. C. dissera que estava tudo resolvido lá fora, poderiam sair tranquilamente pela escada de emergência, e M. pensou aliviado que estavam apenas no primeiro andar do condomínio. C. também explicou que o carro estava na garagem do subsolo e que todas as câmeras de vigilância estavam desligadas. O outro perguntou como ele dera conta de tudo sem chamar atenção de ninguém, porém obteve apenas um meio sorriso e um olhar indiferente como resposta.
         Era realmente um especialista, embora um especialista babaca, concluiu M. em seus pensamentos.
         se está tudo resolvido, como você diz, por que não descemos pelo elevador?
         eu sei que você não é novato no ramo, então me poupe desse tipo de pergunta.
         Foi a vez de M. mostrar um meio sorriso sem uma única palavra.
         para o endereço de sempre?
         C. acenou positivamente com a cabeça, guardou as luvas cirúrgicas ensanguentadas dentro de um pequeno saco plástico, M. lhe passou as suas e olharam em volta do apartamento uma última vez, a fim de se certificar de que não esqueciam nenhum detalhe do combinado. Os homens eram exigentes com relação a todos os detalhes. Todo mundo nesse ramo tem direito à sua paranoia esquizofrênica, mas alguns exageram.

(CONTINUA...)