De quem é a culpa?

domingo, 14 de novembro de 2010

O telegrama do Diabo

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: Whisky Para um Condenado (Matanza)


Preciso correr para deixar um testemunho que valha a pena ser assistido em um vídeo caseiro, para que as pessoas se lembrem de mim. Hoje à tarde chegou um telegrama do Diabo, avisando que faria uma visita a minha residência à meia-noite. Provavelmente para reclamar do prazo do nosso contrato, que está expirando. Uma coisa que vou lhe perguntar é isto: por que essa mania obsessiva com a meia-noite? Por que não às duas e quarenta, ou às dez e vinte e oito? Para que eu não tivesse dúvidas sobre a veracidade da correspondência, o papel exalava um sutil odor de H2S, o tal sulfeto de hidrogênio, conhecido pelas sarjetas como cheirinho de ovo podre. Lembro dessa aula dos meus tempos de colégio. Mas isso é um detalhe tão sem importância que agora comecei a me sentir um idiota. Em frente.

Preciso registrar aqui que fui um homem bom. O fato de ter vendido a alma durante a adolescência não interferiu na educação que recebi, aquela da moral e dos bons costumes. Os porres homéricos e a intoxicação aguda pelas trocentas substâncias cancerígenas presentes no cigarro foram um deslize acidental. Que se repetiu todos os dias desde então, porém, ainda assim, acidental.

Minha mãe, grande mulher, dizia que eu devia ser gentil, honesto e trabalhador. Digamos que, com a venda de minha parte espiritual (o Diabo ainda quis pechinchar, mas acabou cedendo à maioria de minhas exigências com uma carranca), sobrou apenas a gentileza a ser seguida: a honestidade se evaporou no instante em que chamei o Diabo para um bate-papo, e o trabalho, depois dessa conversa, foi totalmente dispensado de minhas obrigações mundanas.

Ajudei velhinhos e deficientes físicos a atravessarem a rua, dei esmolas generosas a mendigos, até mesmo abri uma instituição para crianças carentes, o IBV (Instituto Boa Vida), doei dinheiro a milhares de programas sociais, dizia bom-dia a todas as pessoas com quem encontrava, independentemente de quem fosse, tratei bem a todas as mulheres que conheci. Minha educação foi rígida, acreditem. Por outro lado, que mal há em ajudar a quem precisa ser ajudado? Ao menos eu, com todas as minhas posses, investimentos financeiros e influência entre poderosos, podia me dar ao luxo de algo assim (sem trocadilho).

Entretanto, o Diabo não parece ter apreciado tantas boas maneiras. Estava escrito no telegrama:

                   VOCÊ NÃO SER BEM O QUE PENSEI PT
                   CHEGO MEIA NOITE PT
                   SDS

Também preciso esclarecer que, embora eu tenha sido presenteado com boa inteligência, não pensei, naquele momento, em negociar certos aspectos de minha futura vida. Por exemplo, poderia ter pedido para que jamais tivesse qualquer problema com a ressaca ou com o tabagismo. Hoje estou com um pequeno e constante pigarro no fundo da garganta, enquanto o fígado já deu sinais de estresse pós-traumático toda vez que menciono as palavras alambique e batida, mesmo que esta seja de carro.

Aí, tá vendo?

Notou o espasmo?

Depois volta a fita pra ver melhor.

Da mesma forma, eu poderia ter mencionado, no contrato que assinei a sangue, o direito à imortalidade, então supus que fosse uma baita sacanagem com o Diabo, que provavelmente não teria sua mercadoria entregue. Quando quis adicionar inteligência sobre-humana, ele respondeu que eu ganharia de brinde uma loucura sobre-humana, o que não seria um negócio vantajoso para mim. E quando sugeri ser o homem mais bonito do planeta, ele desenhou um sorriso torto na cara, afilou uma das pontas daquele bigodinho à la Salvador Dalí e disse, em voz baixa e rouca, que eu me empolgava demais, e que a coisa toda não era para tanto. Sujeito discreto, o Diabo.

Enfim, preciso me apressar, já é quase hora da visita anunciada. Declaro aqui, para fins legais, que já paguei os salários da Dona Eugênia e da Srta. Vanderleuza, minhas copeiras, do Seu Randerson, meu mordomo, do Seu Clodomilson, meu chofer, e da Sra. Edilzete, minha cozinheira. Inclusive, preparei para cada um dos empregados citados uma pensão modesta, porém vitalícia, que será válida mesmo que estejam trabalhando em outro lugar. Deixo para o IBV, e para as crianças carentes cuidadas pela instituição, esta casa de doze quartos, sete suítes, seis banheiros, quatro salas, dois salões de jogos, garagem para nove carros, duas piscinas, três quadras multiesportivas, um jardim de dois mil metros quadrados, além da minha coleção de fliperamas e vídeos do Bob Esponja. A Ferrari, o Lamborghini, o Jaguar, o Land Rover, o Maverick e a lambretinha que herdei de meu pai é do primeiro que botar a mão, não tô nem aí.

Sinto que vou levar uma bronca do Diabo. Ele não pareceu nos seus melhores dias quando escreveu o telegrama. Já dispensei todos, dei ordens para aparecerem aqui só a partir das sete da manhã de amanhã. Se bem que eu sei que o cheiro de enxofre demora dias e dias para sumir. Meu quarto de quando eu era garoto, cheio de pôsteres de bandas pelas paredes e revistas de mulher pelada debaixo do colchão, ficou fedendo por seis semanas quando eu topei assinar o tal contrato.

Mamãe, desculpa não ter seguido uma vida religiosa como a senhora queria, mas fiz o meu melhor. Papai, obrigado pelos conselhos e pelos bons exemplos. Não acho que vou encontrar vocês aí em cima, onde já estavam me esperando. Aliás, não acho que vou encontrar vocês novamente no fim dos tempos. Fiz as minhas boas ações, mas o Diabo é o diabo, a sua reputação o precede e a nossa fica com o filme queimado ao lado dele.

Vou esvaziar esta garrafa de uísque escocês dezoito anos, juntamente com esta caixa de charutos cubanos, enquanto espero minha visita ilustre. Afinal de contas, não é o meu corpo que o Diabo vai levar, é só a minha essência.

Paciência.

2 comentários:

  1. Meu chapa, o negócio é o seguinte: o texto tá demais! Me lembrou um grande filme do Ingmar Bergman, chamado O Sétimo Selo; só que, diferente de tua crônica, o herói do filme negocia com a Morte, jogando xadrez com ela.

    Outra coisa: que tipo de Fausto é este? Um Fausto indeciso, quase patético, um Fausto assimilado a um homem comum. Tremendo texto!

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  2. Marlon, não sei se você sabe, mas na Idade Média queimariam escritores como você.
    Texto excelente, de uma concisão implacável.
    Vastos bigodes, Brôu!

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