De quem é a culpa?

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Cantiga

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: rádio de pilha chiando algo de Roberto Carlos ao fundo.


Dona Joana explicou o mundo inteiro ao preparar o café da manhã e esquentar o pão com manteiga espetado no garfo.

Depois, enquanto mexia na panela o arroz e refogava os legumes, falou sobre a vida e a felicidade. Enquanto vinha do fogão o cheiro de cebola frita com azeite, Dona Joana dissertou sobre as mazelas e as feridas dos homens.

O sol batia obliquamente na janela, lançando raios de um amarelo intenso sobre a borda da mesa. A filha mais velha ajudava a catar o feijão do dia seguinte, cabelos presos em um coque atrás da cabeça. A filha do meio lavava a louça, areava as panelas e sentia o cheiro de comida de mãe que impregnava os pulmões e as paredes que chamavam de lar. Sorria um sorriso cheio de estrelas para Dona Joana. Dona Joana lhe respondia com olhar de mãe, cálido olhar de mãe.

A filha mais nova varria o chão e dançava uma valsa galante com a vassoura, enquanto a filha mais velha ria e lhe chamava a atenção. Dona Joana falava sobre os dias, sobre as noites. Dona Joana alertava sobre as intrigas e as fofocas. A filha do meio guardava os pratos e foi quando um deles bateu na borda da pia e se espatifou no chão. Todas olharam, a valsa cessou, a colher na panela não mexeu. A filha do meio olhou para o chão de vergonha, pediu desculpas, mãe, foi sem querer. Dona Joana chegou junto, abraçou a filha e divagou sobre quedas e acasos. Arrumou-lhe os cabelos com a palma da mão e um beijo e voltou ao arroz, jogando-lhe a cebola por cima. Pegou do sal com a ponta dos dedos e o despejou na panela, ao mesmo tempo em que virava os legumes e sussurrava uma cantiga de ciranda de sua infância.

O feijão está limpo, mãe, disse a mais velha, que já se dirigia ao outro lado da mesa com faca e verduras a postos. Dona Joana a olhou de lado, buscou o rosto da primogênita e encontrou o da caçula, encostada à mesa, mãozinhas pareadas à altura dos olhos bem abertos, prestando atenção à irmã que se punha a cortar talos e folhas para a salada. Dona Joana buscou a filha do meio, esta carregava os cacos do prato até a lixeira.

O sol se intrometia até o meio da cozinha, esquentando o alumínio da vasilha com o feijão catado; os feixes do sol, que cruzaram quilômetros de um nada vasto e frio para chegar até ali. O sol bateu em cheio nos cabelos soltos da mais nova, explodindo a beleza de menina em mil outras minúsculas belezas. A filha mais velha disse à irmãzinha para ter cuidado, ficar só olhando, a irmãzinha fez que sim e escondeu o nariz entre os dedos.

Dona Joana não falou mais nada, nem sobre a morte nem sobre a esperança. Foi embalando, devagar, todo o universo em sua cantiga de ciranda. Viu que sua infância se espelhava e se espichava nas três pequenas. A do meio voltou com o sorriso de estrelas para os pratos, a mais nova deu uma risada curta, a mais velha lhe dirigiu uma cumplicidade sem palavras. Dona Joana limpou as mãos na barra da camisa. O sol chamou todas a brincar.

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