De quem é a culpa?

sexta-feira, 4 de março de 2011

CÂNCER (Renato Gimenes)

(Trilha sonora: Jards Macalé)

Antes de tudo, a casa
- ou melhor, a carapaça
que serve de casa.
Casa que é cofre
de entranhas prontas
para sentir tudo
como se fosse a última vez,
várias vezes ao dia.

Ter na carapaça um lar
e abrigar nas entranhas
tudo o que se ama
ainda que às custas
das próprias entranhas.

E ter pinças
para enfrentar
um mundo
que é mangue,
e ter pinças
para escrever
na areia do mangue
escavando vida
na lama
na esperança
de colorí-la
de matizá-la
mesmo tendo
a absoluta certeza
de que cores passam
de que a areia passa
de que o tempo passa:
angústia de segurar
o tempo e a areia
com pinças
trabalhando
para dar forma
à lama.

E ter a necessidade absurda,
desmesurada
de amor
de sexo
de abraços
e de vinho
e de vodka
e de palavras
e de vozes -
necessidades típicas
de quem conhece
o que é experimentar
a vida
de dentro
de uma carapaça.

Em tudo a memória
presente na ponta das pinças
presente no que está espalhado
e marcado
na carapaça,
como conchas
como pingentes
como sinais
como cicatrizes -
memorial
de momentos vividos
assimilados às entranhas
fazendo-as densas,
lentas, plenas, planas.

Consciência de quem tem
entre as entranhas
e o mundo
uma carapaça,
ora blindagem,
ora rosto, que
nem sempre deixa
exposto
o efeito
das memórias guardadas
nas entranhas
como fármacos,
que ora curam,
que ora matam.

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