De quem é a culpa?

terça-feira, 29 de março de 2011

ANTEPASSADO

(Trilha sonora: Simon & Garfunkel, “Voices of Old People” “Old Friends/Bookends Theme”)

Para Josefina Margarida de Oliveira (1907? - 1995)

De ti,
me lembro
dos xingamentos
que me faziam rir
e das palavras
mais velhas
do que toda a idade
que tu tiveste.
Mais velhas
que o século que te gerou,
palavras provindas
de outros tempos
palavras provindas
de outras bocas
de outras épocas
de outra memória
portadora de um tempo
que parecia não ter tempo.

De ti
chegavam
por detrás dos óculos

memórias de Lampião
e do alívio
que se seguiu
à sua morte

e de como o café paulista

ajudou a matar

o teu pai.

Em mim, causaste
esta necessidade de História
que eu amo e que me amaldiçoa.

De ti, também me lembro
de como tuas palavras
traziam
em meio ao papel

velho e encardido

do livro de orações

- mais decorado do que lido -

a proximidade do diabo
a proximidade de Deus
a proximidade dos santos
a proximidade do Juízo Final
a proximidade do perdão
brotando do livro roto,
desfeito, gasto, sujo
e sussurrado diariamente
às seis da tarde.
Palavras
misturadas ao gosto
do café, do pão e da manteiga
que antecedia o teu cheiro
de sabonete antigo,
que eu sentia
antes de dormir,
não sem antes
ouvir as cantigas
também de outros tempos
legadas pela tua voz baixa
que, vez ou outra,
noticiava a vida
dos parentes andarilhos
e migrantes.

Me lembro bem
do dia em que o Nada
começou a se apossar de ti,
domingo, à mesa do almoço:
o Nada se instaurou em ti
naquele pequeno engano
quando você ia nos servindo
ketchup pensando ser refrigerante.
Você riu. Você recebeu o Nada
com um sorriso.

E eu vi os dias passarem
e eu vi o tempo curvar-te
e eu vi como o Nada
paulatinamente
tomou o lugar
das orações,
de Lampião,
de nossos nomes,
e do Dia do Juízo
tornando
a perplexidade
cada vez mais
companheira da memória.

A mim,legaste
o horror ao Nada e o temor
de que nem o Apocalipse sobraria...

Quando por fim
o Nada ganhou,
me foi apresentada
aquela sensação extrema
de ruptura irremediável
feita de madeira,
cimento e terra
e pranto
que a tudo transforma
em passado
e que tem o poder
de fazer o Nada
se espalhar
em pequenas gotas -
e algumas delas
me molharam.

Em mim,
instauraste esta luta
para que essas gotas
nunca virem oceano,
e a convicção
de que a relva
que te recobre,
assim como as lápides,
são monumentos
que por si só
não subsistem.

(Renato Gimenes)

4 comentários:

  1. Menino das rimas, das letras, das palavras doces. Como enxergo suas lágrimas ainda não choradas. Como senti a falta de sua doçura diária, instantânea, acanhada; por vezes triste, por vezes destemida e corajosa. Vocês são tão meninos, tão cólo dos puros. Fiquem com Deus, doces príncipes.

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  2. Querido Renato, fiquei tão envolvido e comovido com este poema, que eu gostaria que ele não tivesse terminado. Texto belíssimo, amigo.

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  3. Li em voz alta pra vó ouvir. Lindo. Te amo.

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