De quem é a culpa?

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A Literatura Pode Ser Perigosa? - Em Pauta: Nietzsche e Sade (Por Bosco Silva)



RESUMO: O texto a seguir corresponde a uma pequena releitura do ensaio “Os perigos da Literatura: o ‘caso Sade’”, de Eliane Robert Moraes, contido no livro “Lições de Sade – ensaios sobre a imaginação libertina”, da mesma autora; porém sendo incluso também na análise a obra de Nietzsche, devido a semelhança de pensamento, repercussão, estilo, em que há a mescla de filosofia e literatura, no caso de Nietzsche, poesia e filosofia à semelhança da obra de Sade.


EM 1924, TEM INICIO UMA NOVA FORMA DE ASSASSINATO, o assassinato como teste de ideias filosóficas, e em que a literatura, melhor, a filosofia de Nietzsche, foi acusada como um dos elementos incentivadores para tal crime. É o que podemos ver através da história do caso Leopold-Loeb.

O CASO: LEOPOLD-LOEB

Nathan Freudenthal Leopold Jr. e Richard Albert Loeb, ambos, na época, com 19 e 18 anos, respectivamente, eram dois alunos com inteligência excepcional, pertencentes a Universidade de Chicago, que decidiram, em 1924, cometer o crime perfeito. Para tanto, sequestraram e mataram Bobby Franks, então um garoto de 14 anos.

Leopold e Loeb achavam-se pessoas excepcionais, ideia tirada de suas façanhas intelectuais: ambos eram superdotados; Leopold falou suas primeiras palavras com apenas quatro meses de idade; já Loeb era, então, o mais novo graduado pela Universidade de Michigan. Ambos começaram a praticar pequenos crimes. Achando-se superiores as penalidades das leis, partiam cada vez mais para crimes mais audaciosos, até que, para testar suas capacidades, resolveram cometer o mais grave de todos: o assassinato. Passaram seis meses arquitetando-o, em seus mínimos detalhes; já haviam escolhido a vítima: o garoto Bobby Franks, que era vizinho de Loeb, e pertencia a família deste.

Ao serem descobertos pelo crime, Leopold e Loeb revelaram terem cometido o crime inspirado na filosofia de Nietzsche, em sua ideia de super-homem.

“Antes do assassinato, Leopold escreveu para Loeb: ‘Um superhomem (...) é, em virtude de certas qualidades superiores inerentes a ele, isento das leis comuns que regem os homens. Ele não é responsável por qualquer coisa que ele possa fazer.’”


Temos, pois, um caso da mais extrema violência, em que o assassinato é justificado através da ideia de superioridade, e em que o filósofo alemão Nietzsche é relacionado a este por meio de sua obra; tendo tal fato sido mesmo usado pelo advogado Clarence Darrow, à época um experiente e conceituado advogado, como meio de evitar que os réus, Leopold e Loeb, fossem levados à pena de morte, argumentando:

"Esse terrível crime era inerente a esses garotos, que se originou no passado … devemos culpar alguém que tomou os ensinamentos de Nietzsche em sua vida? … devemos realmente condenar um garoto de 19 anos pela filosofia que foi obrigado a absorver na faculdade?"

Em outras palavras, o advogado culpa a influência da filosofia de Nietzsche como a verdadeira causa de tal crime.

Mas antes de continuarmos, e tentarmos responder a pergunta título, o que diz esse filósofo?

OPENSAMENTO DE NIETZSCHE

Nietzsche (1844 – 1900) conceitua em seus escritos que a cultura ocidental fora tomada por uma forma de moral decadente, a moral dos fracos, em que por meio desta é ensinado ao homem a odiar a vida, a apostar toda sua vitalidade, sua esperança, em uma vida pós morte, esquecendo a vida concreta, e de seus deveres para com esta; uma moral da renúncia, que em nome de um paraíso hipotético, esquecem de cultuar a verdadeira vida. Nietzsche, ao contrário, crê ser portador de uma mensagem aos fortes, busca por meio desta acordar estes, convidando-os a construir o paraíso na terra, a construir uma moral forte, que ao rejeitar o além ilusório, não negue a verdadeira vida, e que não a torne mais ilusória que aquela. Esta nova moral pertenceria aos fortes que, ao contrário dos anteriores, afirmarão mesmo sobre os maiores dissabores da vida, seu querer-viver, sua vontade. A tarefa de transmutar os valores, de afirmar a vida, será, portanto, tarefa dos fortes, tornando-a cada vez melhor aos seus descendentes, tomando-a em suas mãos, e imprimindo-a o poder da mudança positiva; é tarefa dada aos homens que não temem viver, que não precisam de um consolo de além túmulo para suportar o medo da morte, e também da vida; e a esses homens Nietzsche chamava de superhomens. São tais homens, que possuem a vontade de poder mudar, estão além de bem e mal, de certo e errado, posto que são os verdadeiros criadores da verdadeira moral, já que tais valores pertencem a uma moral decadente, e que deve ser por isso mesmo derrubados.

SADE E NIETZSCHE

Curiosamente, a filosofia de Nietzsche, em parte, fora antecipada por outro filósofo, um escritor francês, chamado Marquês de Sade, que como aquele privilegiava a vontade individual, conceituava a moral de seu tempo como decadente e que subvertia as noções de bem e mal, certo e errado; e que, curiosamente, também teve sua filosofia acusada de influência criminosa, como nos conta o escritor americano Roger Shattuck, em seu livro Conhecimento Proibido, em que afirma que em dois casos de violência sexual seguida de assassinato acontecidos nas décadas de 60 e 80, nos Estados Unidos, as ideias de Sade estavam presente, pois os assassinos não apenas disseram que conheciam Sade, como também tinham cometidos tais crimes sob a influência de suas ideias.

Dois pensadores com ideias semelhantes, tendo seus nomes e ideias envolvidos em crimes, teria sido tudo mera coincidência, ou ambos tiveram participação indireta em tais crimes, provando que a literatura, sim, pode ser perigosa? Mas antes de responder a isso, o que dizia Sade?

O PENSAMENTO DE SADE

Sade (1740 – 1814), diferentemente de outros pensadores, escreveu sua filosofia em meio a romances e novelas pornográficas; o que fazia seus escritos despertar interesse em um público muito mais amplo que não estava interessado apenas em filosofia, mas também em pornografia; meio que melhor se adaptava ao seu pensamento, já que o autor pretendia que os homens retornassem a cultuar os princípios básicos da vida, ao seus instintos básicos, tido por ele como superior as outras formas de pensamento. Portanto, o sexo era um elemento fundamental em seus escritos, pois por meio dele o homem poderia sentir-se como parte da natureza, fato que a moral estabelecida parecia tentar esconder do homem, criando uma enorme barreira entre este e aquela, moral e instinto. E assim como Nietzsche, inverteu noções de bem e mal, certo e errado. Afirmou que a moral baseava-se em noções contrárias à natureza, sendo, portanto, falsa. A verdadeira moral deveria partir dos verdadeiros princípios da natureza, de nossos instintos básicos, e não distorcê-los, e negá-los como impróprio do homem, como então a moral estabelecida tinha feito com o sexo, vendo nele não algo natural ao homem e aos outros animais, mas algo impróprio do mesmo, concebendo-o como antinatural, e recheando-o de sentimentos de culpa e de pecado. Deste modo, em nome dos instintos, Sade passou a defender tudo aquilo que a moral proibia, mas que, segundo ele, era garantido pela natureza, como o assassinato; o roubo; as formas mais extremas de sexo, em que o máximo de prazer está ligado ao mais extremo egoísmo, implicando mesmo na destruição do objeto do prazer; o incesto; o homossexualismo; o aborto; etc. Ele chegou mesmo a afirmar que o assassinato, aos olhos da natureza, era um direito do homem, embora, surpreendentemente, fosse contra o frio, e anônimo, assassinato através da pena de morte, devido a esta não ser algo natural, mas mera convenção humana.

SADE E O CONHECIMENTO PROIBIDO

Em seu livro Conhecimento Proibido, Roger Shattuck (1923 – 2005) toma a obra de Sade como um grande exemplo dos perigos da literatura, pois assim como outras áreas do conhecimento, como a física atômica e a manipulação genética, a literatura ao tocar em assuntos tabus, ou questionar valores humanitários, como propõe exemplarmente a obra de Sade, toca em noções extremamente perigosas, podendo influenciar pessoas com suas ideias perigosas. Roger Shattuck chega mesmo a questionar os livros de Sade entre as obras-primas da literatura universal:

“Deveremos acolher entre nossos clássicos literários as obras de um autor que violou e inverteu todos os princípios de justiça e decência humanas desenvolvidos ao longo de 4 mil anos de vida civilizada? Terá o século XX cometido, com relação ao marquês de Sade, um dos mais monumentais erros de julgamento cultural ao colocar seus livros entre as obras-primas de nossa literatura?”

E ainda, ao refletir sobre a atitude dos escritores e editores que se dedicaram a liberar a obra sadiana para publicação: “em nome da liberdade de expressão, somos capazes de defender práticas como a indecência, a profanação e as expressões de ódio, enquanto ao mesmo tempo tememos seus efeitos sobre a comunidade”.

Contudo, Roger Shattuck, não defende a censura às obras de Sade:

“O Ocidente levou séculos construindo uma cultura que associasse o sexo a noções de ternura e vida familiar. Explorando as próprias perversões, Sade criou uma pedagogia alternativa, em que sexo é maldade e assassinato. Para ele, crianças são como "unhas a ser cortadas". Ainda assim, eu jamais apoiaria qualquer censura ou destruição de suas obras. Basta combater, com todas as armas da razão, aqueles que se iludem e pintam como grandes gênios Sade e outros como ele.”

De modo geral, Roger Shattuck diz que é difícil explicar a reabilitação de Sade e, ao tentar, a uni as ideias de Nietzsche:

"Atribuo-a mais a um sinistro desejo de morte pós-nietzschiano, característico do século XX. Esse desejo de morte busca a libertação absoluta, sabendo que levará à destruição absoluta - física, moral e espiritual".

Em suma, para Roger Shattuck não apenas a obra literária de Sade ofereceria perigo, mas toda obra que quebrasse tabus ou questionasse valores morais fundamentais, como os de certo e errado, bem e mal, etc., o que inclui a própria obra de Nietzsche, e que faz aproximar as ideias de Shattuck da defesa feita pelo advogado Clarence Darrow no caso Leopold-Loeb.

Estaria ai a verdadeira explicação para que obras como a de Sade ou de Nietzsche, tenham exercido influência em assassinos como os descritos acima, comprovando que a literatura, sim, poderia exercer uma má influência em seus leitores?

CONTRARIANDO ROGER SHATTUCK

Porém, há um outro modo de ver tal questão. Em seu ensaio, Eliane Morais aponta algumas, como as de alguns autores que saíram em defesa da obra de Sade, como a do escritor Octavio Paz, que afirmou:

“Não acredito que haja autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles próprios, mas nas paixões de seus leitores”.

Já Maurice Heine, primeiro biógrafo de Sade, responde a questão deste modo:

“Todos os livros, uma vez nas mãos de degenerados, podem ser considerados perigosos. Não é possível prever que impulso mórbido um degenerado pode receber da mais inocente leitura. Uma narrativa sobre a vida dos santos, ou outra sobre a paixão de Joana D’arc, pode perfeitamente levar um desses infelizes a se apoderar de uma irmãzinha e assá-la viva...”

Henri Miller, mantendo a mesma linha de raciocínio, ao questionar a proibição de uma de suas obras, argumenta:

“Não é possível encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tão-somente uma qualidade do espírito daquele que lê, ou daquele que olha”.

Em suma, para estes autores, contrariando as ideias de Roger Shattuck, os livros seriam objetos passivos, incapazes, verdadeiramente, de influenciar alguém, no máximo refletiria apenas a mente do leitor; em outras palavras, o perigo não estaria nos livros, mas sim na mente de seus leitores.

Para tais autores, o erro na argumentação de Shattuck, seria a impossibilidade de se prever qual o efeito que um livro teria em seu leitor, mesmo um livro como o de Sade; isto é, seria impossível provar que um livro que propõe o mal tenha a maldade como um de seus efeitos em seus leitores, já que esta poderia muito bem já estar presente na mente de seu leitor; ou que um livro de amor possa provocar efeitos bons em seus leitores. Ademais, as teses de Roger Shattuck “não nos autoriza a atribuir maior ou menor eficácia a este ou aquele livro, tendo em vista apenas seu conteúdo manifesto”. Por exemplo, no final do Séc. XVIII, o livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, foi acusado de incentivar centenas de suicídios na Europa; o livro conta a estória de Werther, um jovem apaixonado, que não vendo seu amor correspondido se mata. As ideias de Roger Shattuck seria incapaz de prever o efeito de tal livro em seus leitores. E mesmo um livro considerado uma fonte de sabedoria como a Bíblia, já foi inspiração para atrocidades, como a inquisição, causando mais mal que todos os outros livros em mãos de pessoas inescrupulosas.

Visto por essa nova ótica, as obras de Nietzsche não teria nenhuma culpabilidade no caso Leopold-Loeb, anulando totalmente a defesa feita pelo advogado do caso. A culpa recairia apenas sobre os algozes; a maldade já estaria presente em suas mentes antes destes conhecerem a obra de Nietzsche.

CRITICANDO A IDEIA DE PASSIVIDADE DOS LIVROS

Porém a ideia de passividade dos livros, defendida pelos autores anteriores, tem também suas falhas, pois ela não é honesta para com os autores.

Se dizemos que os livros de Sade chocam é porque eles provocam no leitor reações adversas, eles não se mantém como passividade pura, refletindo, como um espelho, apenas a mente do leitor; eles convidam o leitor a participar de uma interação mútua; creio que a grande maioria dos autores não gostariam de ser apenas espelhos de seus leitores, eles gostariam também de provocar as mais diversas sensações em seus leitores, dividindo suas ideias, seus sentimentos, seus segredos, sua mais íntima intimidade, porém para tanto é necessário que o poder de agir lhe seja intrínseco. Negar esta ideia seria também negar o poder das palavras, das ideias; seria negar o poder de toda a tradição; seria sermos injustos com autores como Sade e Nietzsche; mas não necessariamente cairíamos no erro de Roger Shattuck ou do advogado do caso Leopold-Loeb ao atribui-los uma influência má.

A LITERATURA PODE SER PERIGOSA? AS IDEIAS DE GEORGE BATAILLE

Uma saída para o impasse é dado por George Bataille (1897 – 1962). Para ele, como nos explica bem Eliane Morais, os autores da literatura considerada perigosa, aquela que Roger Shattuck inclui entre uma das formas de “conhecimento perigoso”, que manipula a representação do mal, que ultrapassa, ou mesmo invertem noções de bem e mal, certo e errado, e que tem em Sade o maior de seus representantes, buscam por meio da literatura, explorar, trazer à tona, discutir possibilidades que a realidade recusa, por meio de “ uma espécie de ‘ruptura com o mundo’ e, consequentemente, com as exigências sociais de ordem ética e moral”, mas que são latentes ao homem. Deste modo, torna-se necessário a esses autores se desvencilharem dos valores de uma tradição humanista para poderem melhor repensá-los. Portanto, torna-se imprescindível que o autor crie certa cumplicidade com o leitor, para juntos explorarem regiões insuspeitas do homem, alargando o conhecimento deste; conhecimento que somente a literatura pode fornecer. Para tanto, é necessário que o leitor veja o mal não como algo exterior a si, como algo estranho ao humano, “mas sim como uma possibilidade que o concerne”. Neste sentido somente a literatura, para Bataille, pode, por meio do campo simbólico, transgredir a lei independente de uma ordem a criar; o que a torna, em certo sentido, perigosa. Porém sendo ela um conjunto simbólico ela é inorgânica, e sendo inorgânica ela é também irresponsável: “nada pesa sobre ela. Podendo dizer tudo.”

As concepções de Bataille marcam, pois uma profunda diferença entre as concepções precedentes; de um lado, com as ideias que concebem o livro como um objeto totalmente passivo, incapaz de influenciar o leitor, um mero espelho da personalidade deste, posto que devolve aos livros o poder de mexer, influenciar o leitor, criando mesmo uma cumplicidade entre ambos; e por outro, com as ideias de Roger Shattuck, fazendo com que o leitor não seja apenas um ser passivo, em que as ideias de um livro penetre em sua mente sem nenhuma crítica ou participação com este. E enquanto para Shattuck o mais importante é prevenir sobre o perigo destes livros, para Bataille o mais importante é que estes livros são necessários para se compreender o homem, os abismos mais profundos de seu ser, alargando assim o conhecimento sobre nossa própria natureza. O que parece ter sido mesmo uma das intenções de Sade: “a filosofia deve dizer tudo”; e que sendo verdadeiro, tudo deve dizer, mesmo que seja perigoso. O que aliais, como já foi demonstrado quanto a literatura, jamais saberemos o que pode ser, de fato, perigoso, se um livro de Sade e Nietzsche ou uma triste estória de amor como a de Werther, e muito menos se a maldade está nos livros de Sade, Nietzsche ou em seus leitores.

Vale lembrar que Nietzsche e Sade jamais mataram alguém.

“Sim, sou um libertino, eu confesso, concebi tudo o que é possível conceber nesta matéria; mas seguramente não fiz tudo o que concebi e seguramente não o farei jamais. Sou um libertino, mas não um criminoso nem um assassino”. (Palavras de Sade à sua esposa)


Um comentário:

  1. Bosco, eu concordo com o Octávio Paz:

    “Não acredito que haja autores perigosos; melhor dizendo, o perigo de certos livros não está neles próprios, mas nas paixões de seus leitores”.

    Digo isso porque sempre fui um leitor insano.

    Abraços.

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