De quem é a culpa?

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Anorexa, Tu! - 4ª Parte (de Marcos Salvatore)


O TELÉGRAFO
Um brinde esnobe. Olho em torno. Sinto-me estranhamente protegido por esses personagens tão desconhecidos quanto dessemelhantes. Que lugar! O que eu fazia ali? O que fizemos lá? Para onde? Vinte e uma horas e a cidade está vazia... assim como eu. Minto. Eis a verdade: a alegria otimiza menos a fome: além do leite vem a energia. A luz da cidade apaga as estrelas com seu despudor, sua depravação. E depois de algum tempo sem ser notado, você passa a não notar mais ninguém. Boa noite, dependência.
Duas quadras depois, exaustos de tanto correr (aqueles tamancos não ajudavam), dobram na passagem Brasília e se deparam com um beco sem saída.
Quinze anos de experiência investigativa diária dera a Wanderley uma espécie de pragmatismo emotivo, uma lucidez passional ao mesmo tempo derivada e original. Era uma pessoa que a tudo compreendia com um sorriso sincero e pleno. Era da opinião de que existia um motivo para tudo. Nunca deixara nenhum caso sem solução. Conhecia a cidade em que estava como a palma da mão e tinha informantes nos lugares mais inóspitos e perigosos.
- Meus caros, chega a hora de estabelecermos as prioridades: estamos sem carro, estamos em seis, vestidos de mulher e sendo perseguidos por um bairro inteiro. O que sugerem?
- Temos uma arma... – Castro diz isso levantando a saia e mostrando o revolver preso à sua cinta liga: - Ainda restam quatro balas no pente.
Vila, que ficou calado durante toda a perseguição, arranca sua peruca e a joga no chão; tira os cílios postiços e nota que lhe falta alguma coisa:
- Preciso de um cigarro. Um cigarro, por favor. Pra pensar preciso dar um trago, um trago só.
- Só tenho um – diz Sávio, contemplativo: - vamos rachar, só quero um vinte.
Estavam sob a luminária falha de um velho poste, em frente a uma venda de açaí. Fumam em silêncio até que a misteriosa garota da boate se levanta languidamente e pergunta para Sávio, numa espécie de angústia (...) mas antes dela falar, preciso dizer que ela era linda! Linda! Uma Panicat do michê, com melhores modos, porém (Paquita, não!):
- Então... você não foi lá por minha causa?
- Sinto muito, não me lembro de você, não me lembro de nada. Estou sob custódia da polícia, provavelmente até o final da noite estarei preso por assassinato ou pior: morto... e nem ao menos sei o porquê. Me desculpe.
- Mas, como aconteceu?
- O que eu prometi a você? Qual o seu nome?
- Se você não se lembra, não importa mais.
Aloísio explica, em poucas palavras, tudo que acontecera desde que o flagraram fugindo do local do crime.
- Nos encontramos outra noite. Umas semanas atrás. Na verdade não foi bem um encontro. Não tive clientes e no final da noite ele apareceu. Ficamos juntos e eu gostei dele. Parecia tão sincero e foi tudo tão... verdadeiro. A pessoa mais amorosa, mais carinhosa... foi a primeira vez que alguém me tratou como uma mulher.
Castro se aproxima e pergunta sobre o que conversaram. Quem sabe alguma informação poderia esclarecer a presença do rapaz numa cena de homicídio.
- Contei a ele do meu sonho mais profundo, mais secreto. Ele prometeu que voltaria um dia e me levaria para ver o mar. O mar.
- Está nos dizendo que alguém que você jamais vira, promete lhe levar numa praia? E uma puta acreditou nisso?
- E porque não? A vida é tão curta, não é? Ou não é? (...) Esperei por ele todas essas noites e quando o reencontro me aparecesse com policiais e sendo perseguido.
Wanderley, impressionado, delibera: - “Puta, não: Meretriz. Meretriz! Mas isso é outra história, Professor Castro. Todos são inocentes até que se prove o contrário. Não sabemos quem você era ou foi. Tudo que sabemos é que temos um corpo estirado numa cama, num quarto motel vagabundo e que o Sávio aqui, é a única pessoa que sabe da verdade”.
- Com essas roupas não vamos longe – diz Aloísio para Wanderley: - Ô, Mano, você não conhece algum lugar pra tirarmos estas roupas e pegarmos um carro?
- A Seccional do Telégrafo, mas é o primeiro lugar que vão cercar. Não temos passagem.
- Eu tenho uma idéia: O Cacareco.
- O que é isso?
- É um bloco de Carnaval.
- Mas não estamos no Carnaval.
- Eu sei. Mas hoje tem festa Dark por lá. Entramos por trás, tem os banheiros, pelos quintais da passagem União e roubamos as roupas de alguém. Estão procurando por travestidos.
- Então vamos lá.
O CACARECO

Saindo da Brasília, vêem uma senhora na janela, pequenina, moreninha. Pedem um pouco d’água. Ela entra, anda com ajuda de uma muletinha. Trás a garrafa e um copo que é dividido por todos. Olha para suas roupas, maquiagem e sorrí como uma mãe para todos: - “Guenta! Tem doido pra tudo. Desconjuro!”.
Caminham pela curta passagem União tentando fazer todo possível para não chamar a atenção. Wanderley sabia que batalhas de gangues aconteciam muito por ali, por isso o deserto e o silêncio da rua. Porém, já era tarde. Na esquina da passagem Santa Cruz um grupo de pelo menos dez suspeitos os esperavam.
- E agora? Não dá mais pra voltar.
- Vamos passar por eles, então.
- Por mim tudo bem. Quatro balas resolvem.
- Também estão armados.
- Eu não tô nem lá. Cansei de passear. Tá na hora da diversão.
Se aproximam e o líder a gangue dá um passo à frente e diz:
- Vocês devem ser aquele bando de bichas que fugiram do NAIPE, não é? Não quero problemas com vocês. Só queremos esses dois, aí – aponta para Sávio e a garota. Eles valem mais vivos do que mortos. E somos oito contra seis.
Wanderley se aproxima do líder e faz uma proposta irrecusável:
- Tenho uma idéia melhor. Vamos brigar apenas nós dois e quem ficar de pé se manda com tudo, inclusive as armas. Cada um pega o seu rumo.
- Por quê se eu posso erguer a mão e matar todos vocês de uma vez?
- Porque um líder de gangue que recusa um desafio não é considerado. E eu te desafio na frente de todos os teus. Aqui e agora. Como é? É covarde?
- Velhote! Eu vou te surrar tanto que vão dizer que eu te bati com uma tábua.
Wanderley entrega seus pertences para Sávio: - Segura garoto, que faz tempo que eu não pego um palhaço desses.
Todos abrem espaço e a briga começa. Wanderley leva os três primeiros socos apenas para medir a força do oponente. Cai no chão uma, duas, três, quatro vezes. Por entre risadas seu rosto sangra enquanto todos se contém a seu pedido. A cada soco Wanderley ri cada vez mais e mais alto. Sua idéia era chegar perto o bastante para dar um único golpe.
- Para de rir! Para de rir!
É nesse momento que seu adversário se aproxima o suficiente pra levar um quebra-perna de Wanderley, caindo em seguida aos berros.
Wanderley o segura pela camiseta e o arrasta até a vala mais próxima; diz:
- Meu rapaz. Posso quebrar a outra perna ou te fazer beber água da vala. Qual vai ser?
- Vai te foder!
- Boa escolha. Você é quem sabe. Vai comer merda agora.
Com destreza, enfia a cara do bandido na vala várias vezes, quase o afogando. Chega perto de Sávio e se lembra: - Porra, esse vestido até que é do caralho.
Depois de pegar a rua sem maiores problemas, atravessam os quintais de terrenos baldios e chegam finalmente na entrada de trás do Cacareco. O Pink Floyd Cover fazia um dos seus melhores shows.
- Parece um velório em preto e branco.
- Pelo menos não é um show de aparelhagem.
- Merda! O jogo já deve estar no segundo tempo.
Roubaram as roupas de quem apareceu pra mijar.
- Vamos tomar pelo menos uma antes de ir embora. Só pra ver se cola.
Enquanto tomavam seu drink, não sabiam que uma figura de óculos escuros e aparente interesse em todos se aproximava.
O OBSERVADOR

- Boa noite, senhores. Vejo que trocaram de roupa. Essa está melhor.
- Quem é você? – pergunta Castro, segurando de leve em sua arma.
- Sou um Observador. Chancei, ao seu dispor. Estou aqui para ajudar e trazer notícias dos outros.
- Que outros?
- Do delegado e do advogado. Eles chegaram bem e estão interrogando o padre nesse momento. Estão na Igreja das Novenas. O garoto já lembrou?
- Não. Ainda não.
- Já sei o que houve na Santa Cruz. Foi uma boa briga. Boa briga.
- Precisamos de um carro pra sair daqui.
- Daqui à pouco passa o último Icoaraci. Perto do Curro Velho. Se o pegarem podem descer na Praça do relógio em pouco tempo.
- E você?
- Eu não vou. Eu fico. Não tenho nada com isso. – vira-se para o garoto e diz: - E lembrem-se: talvez a chave de tudo não seja o garoto afinal. Posso distrair quem estiver esperando por vocês lá fora enquanto todos correm. Nos vemos depois da festa.
Quando saem, percebem que o lugar realmente está repleto de figuras mal encaradas.
- No meu sinal vocês correm em direção da Pedro Álvares.
Chancei então puxa duas armas e começa atirar em todas as luminárias dos postes, depois os pneus dos carros. Dá o sinal e todos correm para o semáforo. Acontece que na encruzilhada outros raptores os esperavam para uma armadilha. Pularam um muro que dava pra uma casa fechada. Casa esquisita, sem fachada, nem janelas, apenas vitrôs. Entram todos pela cozinha e bloqueiam a entrada com a geladeira e o fogão. Sobem uma escada giratória estreitíssima até um minúsculo terraço de onde puderam ver o tamanho da encrenca em que se meteram: de todos os lados da Arthur Bernardes e da Pedro Álvares Cabral, armas apontavam para cima. Começa então um tiroteio que acaba com toda a munição.
- Estou vendo o ônibus. Está chegando perto.
- Então vamos ter que pular.
Preciso falar um pouco do sargento Vila: era um homem sem medos, porém nada o assustava ou confundia mais do que grandes alturas. Por vezes, da janela do seu apartamento (janelas com grades) olhava para baixo e pensava: - “E se eu pulasse e saísse voando? Não cairia nunca. Nunca!”. Estou exagerando, desculpem, mas quem não se pergunta isso? O certo é que seu território sempre fora o chão. Então aquela situação parecia decisiva: pular ou não pular para ele lhe tirava o fôlego só em pensar. Mesmo assim, antes da hipótese suicida de pular surgir, pensou: - “Um pôr-do-sol daqui deve ser do caralho!”.
- Ele parou! Parou! Se corrermos e nos jogarmos no teto do ônibus estaremos salvos.
Aloysio toma distância e se joga, caindo em seguida com segurança em cima do teto do ônibus que estava bem perto deles. Wanderley, Sávio e a garota o seguem sem problemas. Ao perceber a jogada, os bandidos embaixo começam a atirar. Castro vira para Vila sôfrego;
- Pula, porra!
- Não posso, não consigo!
- Então ficamos aqui, os dois. Não vou te deixar aqui pra morrer, seu cagão!
Vila fecha os olhos, toma distância e antes de se jogar tropeça e fica preso pela jaqueta entre o ônibus e um ferro solto no vitrô, do segundo andar.
- Espere não se mexa, só mais um pouco. Ainda tenho dois tiros. Prometi usar todas essas balas hoje.
Castro então mira com sua Magnum 44 e atira, soltando o amigo. Pula em seguida, pouco antes do motorista, desesperado pisar fundo, quase jogando-os de cima do ônibus.
- Estão todos bem? Todos bem?
- Não, acho que vamos ter que dar uma parada.
- O que houve?
Sávio sorri nervoso antes de virar para todos e mostrar o sangue no peito.
- Puta merda.
Aloisio passa a mão pela cabeça. Todos se entreolham enquanto o rapaz é agarrado pela garota em prantos. Dois carros os perseguem.
- Ele está sangrando muito!
Ônibus em disparada já estava indo para a garagem depois da última volta. Castro se arrasta até abertura da porta superior e consegue entrar. Aproxima-se do motorista e grita:
- Pare esse veículo que eu vou descer. Essa merda já foi longe demais. Longe demais.
- O que ele vai fazer?
Castro desce e o ônibus segue. Espera pelo melhor momento e dá um tiro certeiro que faz um carro capotar por cima do outro. Um dos bandidos se arrasta atirando e acerta Castro na perna, outro também se recupera e se levanta, aponta a arma para Castro que, indefeso, balbucia: - “Então, é isso!!”. Não vê o ônibus dirigido por Aloisio na contramão, a toda velocidade se aproximando.
O impacto da batida foi tão grande que o bandido foi parar a metros de distância.
- Carona, filhão?
- hehe! Tu sabes.


Na Igreja, depois de ouvir a confissão do padre, o telefone de Seu Iraque, digo, Eráclito, recebe uma chamada a cobrar:
- Que foi, porra? Telefone público? Por que estão demorando tanto? (...) Sei, dois feridos. E o motorista do ônibus? Ok, em segurança. (...) Precisam descer na Dona Roxita pra fazer curativos. É puta velha, vai resolver tudo. (...) Minha mulher já me ligou escroteando. (...) Porra, Wanderley, na minha ausência o comando é teu, cacete. Quero vocês aqui antes do final do jogo. (...) Tá 2X2. Caso sério. O Bocage já tá virando do avesso. E o garoto? (...) Escuta.. escuta... só me ouve. Tem uma garota com vocês, não tem? Isso mesmo. O nome dela é Lucrécia. Lucrécia, ouviu? O padre confessou tudo. Ela é a culpada, Wanderley, a culpada pela amnésia do garoto.

CONTINUA...

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