De quem é a culpa?

segunda-feira, 31 de março de 2014

LETTICIA SHOW (de Marcos Salvatore)

A partir do poema-fotografia "Persianas", de Fabio Castro.





Poucas palmas em Belém: algum lugar entre as duas e as três.
Mas a chuva dourada da Xeiro Verde respinga bastante. Justifica o nome da artista, seus classificados. Uma mulher famosa entre os pescadores fracos e oprimidos.
Ou eu amo Dor de Cotovelo ou me odeio com hora extra.
Agora, imaginem um viado preto, transexual, ex líder de gangue, evangélico dizimista, vegetariano, frentista trocador de óleo e brother, velho camarada. Se eu disser que, ainda por cima, essa bicha querida é fã de Agatha Christie, vocês não acreditariam.
- Ih, adoro. Já passou das sete doses, Bofe. Larga essa carta.
- Nove. Estou contando. Depressão tem muita cede, Vaca.
- Ave, esse chifre está charlando.
- Essa mulher bagunçou com a minha vida, porra. Não te mete.
- Humhum, eu hein! Vai acabar piorando, tá, meu bem?
- Problema meu.
- Então, se joga.
Essa Síndrome de Madame Satã ambulante é o Nildo, vulgo Letticia, meu melhor amigo de infância. Exemplo de que a cultura de uma geração não se transmite a outra.
Um artista performático da terra – se é que a madrugada do bairro do Comércio seja a Terra de alguém. É a minha. Assim como a concepção do espetáculo, o texto inflamado, enfim. Seu show de Clara Nunes é imbatível. Puro Almodovar com Liza Minelli.
Mas, preciso dizer mais uma sobre o Nildo: conhece trechos de Nietzsche de cabeça.
E, nesta noite, aqueles cílios adoráveis pagaram o maior sapo:  - “Aos 36 anos desci ao ponto mais débil de minha vitalidade: vivia ainda, mas sem enxergar um palmo diante de mim”.
Dobro a carta e a guardo no bolso da camisa, junto com o cigarro. Ainda dou um tempo para ver o Nildo cantar Retrato em Preto e Branco: - “Lá vou eu, de novo, como um tolo”.


E assim fui, do Biri Nights em direção à sopa (com ovo cozido). Janto e saio para uma saideira na escadinha da Feira do Açaí. Gosto de andar – herança de três casamentos.
Perto do Verol, com vista para o primeiro necrotério: morte antiga e sanitária. Jornalismo é aventura. Na Cremação os animais eram incinerados. Porém, acredito que alguns indesejados também viraram cinzas.
Sinto falta de uma trilha de rock, na veia e regional, logo, solicito uma trilha de Clube da Esquina para a travessar a pracinha do relógio e ir mijar no canto da farmácia.
De cara, uma magrela linda, cheirando a cola de sapateiro (reconheci o aroma), me pergunta se eu topo uma voltinha por um troco ou um completo. Liquidação!
Ora, todo bêbado passa por um processo de decomposição moral que puta que o pariu. Então, como um bom jocoso-conservador, cato a camisinha no bolso esquerdo de trás e parto para o crime.
Só demora uma esquina e uma Praça da Sé para a promoção da minha vigésima sétima surra pública dar resultados. O Nietzsche do Nildo daria alegre adesão a minha surpresa? Ela, por outro lado, eu já sei, diria: - “Tô passada, mas bem feito”.
Quem nunca foi jogado escadaria abaixo não tem noção do significado da restauração da inteligência. Penso: - “Será que isso é porque eu não sou mais partidão?”.


Já tinha enfiado na bundinha da pequena, marcadinha de carapanãs. Estava tão gostoso que a primeira pancada na cabeça me fez gozar na hora. O vento assoviava por entre as folhas das mangueiras centenárias. A mesma canção que soprou para um dirigível no passado. A gala escorria líquida e inocente na superfície do meu medo.
Tento esconder meu pau pinganolento. Cai o celular do meu bolso, tocando Mutantes. Apanho calado, ao som de “Vida de Cachorro”. Sou surrado desajeitadamente – uma sorte, devo admitir.
Antes da dor, penso: - “Se eu pegar no sono agora posso dormir direto - sonhar que estou feliz em outra cama com ela - e acordar no fim da linha do Che Guevera”.
Ainda vejo os canhões e conto todos os meus anos. Tarde demais para a insônia das ondas não ser despertada quando sou jogado.


Meu único mérito é saber perder. Então, perco e calo ao me tocar que a carta, última dela para mim, boiava em outra direção. Tudo acabado.
Sei nadar, mas não boiar. Enlouqueçamos, pois. Como diriam os Dzi Croquettes.
Quero que meu corpo inchado surja na enseada de um lugar com casinhas de paredes brancas. Brancas, não. Casas amarelas, com crianças ribeirinhas e tias catando piolhos.
Ser encontrado por crianças... Não, melhor virar comida de peixe e retornar vorazmente a uma origem. Signo em vida e em morte, alimento da raça. E renascer como um domador de cavalos.
O problema é que não acredito em raças. Nildo, também não.
Seria complicado uma cota para ele, não acham? Aliás, com tanto nome gay muito melhor, ele tinha que inventar justo aquele? Nome de menina de Nelson Rodrigues.
Não sei o nome da baía. Ninguém nunca me falou. 37 anos sem ouvir.


A correnteza me leva. Tento lutar, mas não consigo. Uma situação que vai tornando a existência da lua brilhante a favor das braçadas contra a corrente - mini puta de vertente em vertente - não fala por mim, mas observa - e, observado vou.
Meus braços doem. Não alcanço a beirada. Não consigo gritar. Sou puxado e desisto.
Lembro de um texto meu que a Letticia tanto gosta de trabalhar em cena, vestida de bailarina flamenca, com faixa da presidência do Cacareco. Acho relevante e o rezo para as estrelas:

“Oh, Deuses da pré-menstrual idade intencional
Sua sensualidade corrupta não me inspira mais
O que existia de sensorial nesta cidade sumiu
Foi incompatível com o bem estar da TPM estatal

Após encontrar minha própria fome hedonista
Após entreolhar por persianas, com ciúmes, sua demência
Dionisíaca com brancos, negros e índios a granel
Entrego-me a baia triste e sem filosofia

Pareceiros, desconjurados, espíritos dos bairros
Verdadeiros combatentes. Nós só fizemos merda!
Eu os saúdo.”

Sou flagrado roubando a atenção de um cachorro, lá fora - penso em refrãos de Jovem Guarda, Tom Jobim me agradaria - canção por canção não me interessa mais. Ele late.
Um cachorro vai me ver morrer, na espiral do silêncio. Vai saber.
(...)
Ou saberia, se não fosse pelo barquinho de pupunhas.



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