De quem é a culpa?

terça-feira, 26 de julho de 2011

A Dama do Túmulo (de Bosco Silva)








A LENDA DA MULHER DO TÁXI


Dedicado à Memória de Josefina Conty, a Mulher do Táxi. Que sua alma descanse em paz...


Em vida, durante seu aniversário, seu pai lhe dava como presente uma corrida de táxi pela cidade de Belém, por seus pontos turísticos. Tal costume, como testemunha a lenda popular, perdurou mesmo após a vida, pois toda a noite de seu aniversário ela costuma ainda, à meia-noite, pegar táxi e vagar pelas ruas de Belém.

Conta a lenda que tudo começou numa noite de seu aniversário, em que um taxista avistou uma moça bela, morena, vestida de branco, enfrente ao cemitério. Parou o carro e permitiu que a passageira embarcasse. Após rodar pelas ruas da cidade a moça pediu para que a deixasse em sua casa, na avenida Gentil Bitencourt. Ao descer do carro, a moça gentilmente pediu ao motorista se este não podia vir em outro dia, em sua casa, em busca de seu pagamento. Este concordou e, ela ao entrar na casa, o motorista partiu. No outro dia o motorista foi à casa; ao chegar lá, uma velha senhora lhe atendeu; ele lhe disse que estava ali para receber por uma corrida que uma moça tinha lhe pedido para buscar outro dia. A senhora lhe respondeu que a única mulher que morava na casa era ela, à anos. Disse ele que não podia ser, pois tinha visto a mulher entrar na casa. Após tentar várias vezes convencer a senhora, eis que o vento abre a porta de um cômodo que dava para a sala, expondo um retrato na parede. O motorista imediatamente observou: veja, foi aquela moça. A senhora imediatamente lhe respondeu: mas esta é minha filha já morta alguns anos...


O CONTO: A DAMA DO TÚMULO

Este conto é dedicado a todos os fantasmas; a essas
criaturas tristes e solitárias, que alegram minhas madrugadas.


- TUDO COMEÇOU NAQUELE DIA, QUANDO CHEGUEI ATRASADO AO ENTERRO...
O enterro estava marcado para às quatro horas da tarde; porém, cheguei às seis da tarde ao cemitério. Não havia mais quase ninguém naquela velha cidade da morte. Aproveitei então para dar um pequeno passeio pelas redondezas, por aquelas últimas moradas. E após andar por alguns minutos, por entre aquele imenso labirinto da morte, encostei-me, casualmente, em um velho túmulo para fumar um cigarro. E enquanto fumava, pus-me a examinar o local. Olhei então para o túmulo que estava em minha frente. Vi sobre a lápide uma foto de mulher, de uma bela mulher que aparentava estar na flor da idade, vestida em seu belo vestido. Vestido que deve ter lhe acompanhado em alguns momentos mais felizes de sua vida, mas que agora jazia sob o frio daquela pequena construção de mármore.


O túmulo aparentava ter sido abandonado por seus familiares, há algum tempo. E, em alguns lugares, o mato crescia, como o terrível símbolo do esquecimento que inevitavelmente causa a morte. Olhei ao redor, todos os túmulos ostentavam flores, menos o dela. E, ao olhar, vi uma pequena árvore, que embora pequena, transbordava de flores. Apanhei algumas e pus sobre seu túmulo, dizendo: “Que a uma dama jamais se negue flores!”.


A tarde já se esvaia em um maravilhoso tom vermelho, como as últimas gotas de sangue de uma lenta, e pálida hemorragia, quando me despedi daquele túmulo, caminhando, cruzando o cemitério, em direção de sua saída. E por mais que andasse por aquelas avenidas lúgubres, não conseguia pôr-me em direção a saída. Olhava o céu agora já em um tom azul marinho, que aos poucos tornava-se escuro. As luzes do cemitério se acendiam, e mal clareavam o caminho. Foi quando me senti preso em um labirinto. Em um labirinto de pequenos cubículos, que eu sabia que não estavam vazios. A sensação de não estar sozinho evadia minha alma, que ao cruzar pela terceira vez a mesma avenida, me desesperava... Olhei e senti algo familiar naquela avenida; era a avenida que abrigava aquele velho túmulo. Dirigi-me então para o mesmo. Observei que as flores já não estavam mais sobre ele. E que havia naquele rosto, da foto, detalhes que não havia antes visto, como um leve sorriso, que agora despontava daquele belo rosto. Pude ler então seu nome: Josefina. Imediatamente, pus novamente as flores no lugar e segui o meu caminho...


O cemitério estava agora totalmente vazio; nem uma voz se ouvia, somente o vento por entre aquelas construções sem vida. E ao cruzar pela quarta vez por aquela, agora, familiar avenida, percebi que estava andando em círculos. Decidi então cruzar pelo velho túmulo e seguir em linha reta, adiante, sempre adiante, tentando lembrar o caminho seguido antes. E ao passar novamente pelo túmulo, reparei que as flores não estavam novamente lá. Pensei no vento, e na possibilidade deste as ter derrubado; e pus novamente elas no lugar. Foi quando, curiosamente, olhei novamente para a foto. Além do leve sorriso, pude ver agora um suave olhar para mim. As luzes pareciam terem feito seu semblante mudar, acrescentavam agora um delicado piscar. E, de repente, pude ouvir, então, uma ofegante respiração, por entre os túmulos, aumentando... aumentando... aumentando... Até que, uma mão pôs-se sobre meu ombro. Um imenso arrepio percorreu por todo o meu corpo; virei-me então para olhar... Era um velho coveiro, que dizia-me:


- O Senhor está perdido? Estamos na hora de fechar.
- Sim, sim. Vejo que perdi a hora – disse eu a este secretário dos mortos.
- Então, favor, siga-me.


E assim, segui-lo. E pude, finalmente, encontrar a saída, tão almejada.
* * *
À noite, mal pude dormir, pensava no meu amigo, na sua morte, na falta que me faria, e em não ter podido, dele, me despedir. E, nas poucas vezes que conseguia dormir, sonhos invadiam minha mente. O mesmo sonho recorrente. Sonhava com a mulher do túmulo, vestida em seu belo vestido branco, rodopiando em um grande salão antigo, com grandes janelas e cortinas de veludo vermelho e, no teto, um grande lustre cor de prata, clareava o ambiente, que explodia em alegria. Ela dançava com alguém, em meio à dezenas de casais que dançavam com leveza e graça. E ao rodopiar ao lado de um imenso espelho, pude ver que o cavalheiro, com quem ela dançava, era eu, vestido em trajes antigos, também. Espantado, soltava suas mãos e tentava fugir do salão. Porém, os casais, rodopiando ao redor do mesmo, não me deixavam sair. Ela olhava-me, chamando-me com suas mãos estendidas. Os casais ao redor, ao passarem ao meu lado, diziam-me: “Vamos Bosco, dance com Josefina Conty”.


Naquela noite acordei assustado; minha alma transbordava o negrume da morte, pois algumas pessoas que tinha visto no sonho já tinham a muito morrido; eram parentes e amigos. Lembrei-me de ter visto também entre eles Raimundo, o amigo recentemente falecido.


Passei todo o dia pensativo. Liguei para a mãe de Raimundo, e me desculpei por não ter chegado a tempo ao seu enterro. Pedi seu último endereço e prometi visitá-lo, imediatamente.


À tarde, como prometido, voltei novamente ao cemitério, desta vez para visitar o túmulo de meu amigo. Levava comigo algumas garrafas de vinho, flores e o mapa do cemitério, que peguei com a portaria. Desta vez não me perderia...


Após visitar o túmulo do amigo, e depositar em seu túmulo flores e uma garrafa de vinho, em nome das noites de boêmia, fui compelido, por uma curiosidade mórbida, ao visitar o túmulo da bela dama morta.


Ao chegar, surpreendeu-me verificar que as flores não estavam murchas, mas organizadas e umedecidas em um vazo sobre seu túmulo. Lembrei-me então do sonho; e curioso verifiquei seu nome. Percebi então que seu nome se deteriorara, permanecendo apenas o nome Josefina. Depositei novas flores; observei sua foto por alguns minutos, e, em seguida, voltei para casa.
* * *
À noite, novos sonhos me assombraram. Sonhava novamente com a dama morta. Esta vinha à minha cama agradecer-me pelas rosas depositadas. Chamava-me por meu nome: “Bosco... Bosco... Bosco... obrigado pelas flores... Venha querido... Venha comigo”. Levantei-me da cama, e, de mãos dadas, pus-me a caminhar ao seu lado. Ela, levou-me para um outro quarto, de mobílias antigas e cama de colunas de carvalho. Um quarto que não pertencia a minha casa. Beijava-me a boca, e lentamente tirava o seu belo vestido; surpreendendo-me com um lindo corpo lívido, que me extasiava, absorvido em um misto de delírio e prazeres contínuos.


Na manhã seguinte, acordei-me nu e fraco, totalmente exaurido. Manchas de suor cobriam ainda o leito, tantas vezes nele dormido. Lembrei-me dos sonhos eróticos de minha infância. Porém, neste havia um sabor que nenhum outro tinha: um misto de prazer e terror, que eu jamais tinha visto.


O dia transcorreu sob uma angústia inquietante. Vozes e pensamentos me torturavam. Um sentimento estranho de saudade me abalava. Tornava-me um ser com indisposições estranhas e inexplicáveis.


Na noite seguinte, após logo deitar-me e fechar os olhos, senti a sensação de parte do colchão afundar, pouco a pouco, como se alguém cuidadosamente se deitasse ao meu lado, não querendo me acordar. E ao sentir isso, virei a cabeça para verificar, e ao olhar, verifiquei que não havia ninguém ao lado! Nesse momento, o medo e o espanto apoderam-se de mim, e me perseguiram durante outras noites. O medo que da próxima vez se repetisse e que a visão fosse terrível...
* * *
Seu túmulo não saia de minha mente. Todos os dias, algo me compelia a visitá-lo. Uma obsessão tomou conta de mim: um misto de prazer e agonia em observá-lo.


Sonhos evadiam minha mente. Sonhava com ela, todas as noites. Sonhos lúbricos, e lascivos, parecia nutrirem-se de mim. E quanto mais fraco eu tornava, mais forte os sonhos ficavam; ao ponto de não mais saber se eram sonhos ou realidade.


Os floristas já me conheciam. Olhavam-me como alguém que teria perdido um ente querido; do qual, da saudade, não conseguia se desvencilhar.
* * *
Os dias transcorriam em estranha normalidade. Porém, numa noite, enquanto estava no banho, ouvi pequenos sons de pisadas pela casa. Pareciam com sons de passos femininos, que pisavam com suavidade. Imediatamente sai do banho, para verificar de onde vinham. Nada vi, exceto um vulto branco que cruzou-me próximo ao quarto. Estranhamente minhas roupas não estavam onde eu as tinha deixado. Procurei, por elas, por todos os lados. Por fim, encontrei-as no cabide, bem no escuro do quarto. Então, ao apanhá-las, um imenso calafrio invadiu minha alma, e tombei ao chão desmaiado... Ao acordar, tudo estava escuro. Porém, ao acender a luz, meu amigo, lá estava ela, ao olhar-me com aqueles belos olhos! Sim, era ela Josefina, que me espreitava. O susto, em seguida, deu lugar a volúpia, como os de corpos que se tocam, com cumplicidade. Tudo parecia real, seu corpo, seu toque, seu hálito. Porém, ao abraçá-la, um estranho frio de seu corpo emanava...


Ao acordar, tudo parecia ter sido apenas sonho, mas algo havia naquilo que me fazia discordar. A dúvida evadia minha alma: teria tudo sido apenas sonho? Estava eu vivendo uma alucinação, daquelas que atormentavam tanto a alma? Foi quando a resposta me veio à tona...


Ao visitar mais uma vez o cemitério, procurei as origens daquele túmulo que tanto me fazia pensar. E ao pegar um velho livro de registro, pude, finalmente, comprovar, que ali jazia Josefina Conty, morta em 1931, em plena flor da idade, em seus belos vinte anos. A verdade tinha vindo à tona, do modo mais pungente. Sim, seu nome correspondia ao sonho que eu tivera anteriormente, aquele que sonhara com um grande salão de baile.


Cheguei em casa, nesse dia, embriagado. Ao abrir a porta de casa, senti um suave perfume de flores. Perfume que exalava por toda a casa. Fui para o banheiro, lavar o rosto. Olhei-me no espelho enquanto me banhava. Vi um pequeno pente ao meu lado, sobre a pia. E ao olhar para o meu reflexo no espelho, vi o pente, por trás de mim, levantar-se, à minha altura; olhei para trás... Você não vai acreditar!, lá estava ela, novamente, desta vez em carne e osso, se penteando, com aqueles belos olhos verdes à espreitar-me. Olhei para o espelho, novamente, não via nada. Ela agarrou-me, beijou-me a boca; senti como se a vida se esvaí-se de mim, pouco a pouco. Ah!, aquela boca me tragava a vida...


- É! É uma história e tanto! – disse-me o amigo esboçando dúvida, mas acima de tudo curiosidade. E continuou a interrogar-me:
– E como se desenrolou essa história?
- Ah! Ela levou-me para o quarto. E quanto mais me beijava, com seu belo corpo nu, mas sentia-me fraco... fraco... fraco... E após esse dia, todas as vezes que voltava para casa, lá estava ela à esperar-me, com seu belo corpo, que a cada dia mais me extasiava, num contínuo mundo de prazeres sem fim. E à olhos vistos, meu amigo, cada vez mais me degradava... Ela tornou-se, para mim, como um vício, que embora tornava a vida prazerosa, viver em sua companhia, cada vez mais algo de mim tirava...


Porém, uma noite, ao chegar em casa, feliz em poder desfrutar mais uma vez de sua companhia, notei que ela não estava. Chamei-a, e, por mais que a chama-se, ela não vinha. Fui então para o cemitério, em plena madrugada, dormi sobre sua lápide fria, fria como seu belo corpo. Acordei-me com ela me olhando. Acariciou-me os cabelos, e disse-me, que se continuasse me mataria. Ah, meu amigo, cai em pranto, e de joelhos, e lhe supliquei que continuasse. Que nada me importava, nem mesmo a vida, sem sua companhia...


- Bem, parece-me ser a primeira vez que ouço uma história de fantasma que parece ser agradável. Era ela, então, um belo fantasma?
- Sim, sim, do tipo de mulher que qualquer homem desejaria. Era maravilhoso viver em sua companhia. Todo dia não via a hora de chegar em casa. Porém, nem tudo é perfeito!, meu amigo.
- Por quê?
- Porque descobri que Josefina me sugava a vida, como um vampiro.
- Como um vampiro?
- Sim, sim. E o que mais me entristece é que a cada dia menos vida eu tenho para lhe dar...

PARA LER ESTÓRIAS BIZARRAS E DIFERENTES, ACESSE: cerebrau.com.br

ARABESCO (de Marcos Salvatore)




Não, meu amor. Não é um poema – gosto de poesia, realmente, mas... -; é só uma coisa pra você; (também minha...) às três da madrugada. São tentações de cognitivo e grávido gesto, expressas em muitas palavras sem querer de um afetuoso sonho não dormido, insone no gozo de provar – sei que gosta quando falo assim. Você me diz sempre que pode. Se queixa que eu paro quieto, que a barra pesa lá fora.

Nosso amor não deixa fósseis nem rochas, só sentimentos em relevo. Ao seu lado, palavra por palavra, eu talvez me aprenda como sou, apenas sendo e aceitando este ser mais velho além de você, que me invade constantemente as recusas. Anos-luz dentro... fora. Agora, aqui, escondido em vida própria pouco antes da gente se conectar – tenho medo, eu custo um pouco: - “Estou do avesso, me dobre”.

Há quanto tempo se troca por um degenerado, louco transitivo? Aplicado em te divertir com narrativas de noites e noites sem dormir. Muitas histórias de alguém tentando voltar pra casa, não só as mãos vazias - nem tudo está ao nosso alcance de parir. Cada qual na sua onda, sua praia, procurando se ligar. Maior sujeira, se abrir, desabafar de bar em bar: é tudo tão ensurdecido. Sei que concorda.

Você não me dá escolha, a não ser ficar e esperar passar das duas, me permitindo pensar que tudo que temos são as horas que não percebemos quando estamos juntos - a condição é essa. Acho até que, inevitavelmente, ser feliz deve ser isso: não perceber que se guarda (ou aguarda) o que é vital.

É comum eu me descabelar na sua boca, entre suas pernas – seguro nos seus peitos pra não me despedaçar na luta contra as coxas. Não sei mais como me vestir, nem me ferir. Tudo isso, nada disso. Não sei mais vagar por aí. Então te respiro os cabelos insanos: - Me dispa! Me fira! Me viva, porque eu não sei do que se trata se não for amor! Nunca soube. Até sabia. Até achava, depois perdia. Até hoje... outro dia.


quarta-feira, 20 de julho de 2011

Entrevista com o Diabo (de Bosco Silva)














CARTA AO LEITOR

Caro leitor, aqui, finalmente, está, o que tenho guardado a alguns anos. São segredos que me foram revelados a poucos anos. E que não poderia deixá-los encobertos por puro egoísmo. Por isso, aqui venho, por meio desta, dividi-lo com você, pelo grande valor de seus conhecimentos.

Nela estão algumas revelações, que após anos de pesquisas, foram-me possíveis pelo contato com uma estranha entidade ancestral, que presidiu a própria criação do mundo.

Peço-lhe que julgue por si próprio a veracidade de tal história, sempre levando em conta o bom senso em tal investida. E mesmo que creia não ser verdadeira, atente para o conhecimento que nela está contido, pois são conhecimentos reveladores, que podem ser vistos como independentes de sua história.

O Autor.




ENTREVISTA COM O DIABO

“É doloroso, mas o mundo é do Diabo, assim como o Céu é dos tolos”
(Palavras de Satã, personagem da obra Macário de) Álvarez de Azevedo


Estávamos todos bêbados naquela noite, e, quando isso acontece, quase sempre alguém inventa a brincadeira do copo.

Para aqueles que não a conhece, ela chama-se assim por utilizarmos um copo como apoio para nossas mãos, e também como seta, que indicará letras, que formarão palavras por meio dos movimentos involuntários de nossas mãos sobre um tabuleiro, tendo todas as letras do alfabeto.

Esta é uma velha brincadeira, que não assusta mais, com sua idéia que um espírito ao redor da mesa irá responder todas as nossas perguntas, já que todos sabemos, como já foi dito, que se deve a movimentos involuntários, ou a vontade, bastante voluntária, de alguém engraçadamente intencionado.

Mas, não ligando para isso, e tendo apenas o intuito de diversão, nos entregamos a tal brincadeira.

Em um dado momento, as letras se conjugaram e formaram a palavra Belzebu, e logo em seguida a palavra telefone, seguida por meu nome.

As risadas imediatamente se alastraram pelo ar. Senti-me logo como o escolhido, para as próximas brincadeiras que dali surgiriam, naquela noite.

E, malgrado meus avisos que não iria me assustar com tal brincadeira, o telefone tocou imediatamente.

Era para mim. E aos risos fui atendê-lo.

Do outro lado, uma voz bastante grave me dizia:

- Aqui é Belzebu. Meu mestre, o Diabo, gostaria de contactá-lo.

Eu, admirado pela organização e rapidez da brincadeira, fiz questão em participar dela.

Disse-lhe, então:

- Qual o motivo de tão magnífico convite?
- Os dois artigos que escreveste sobre o Diabo.
- Ah!, sim, O Diabo e o Rock* e A Verdadeira História do Diabo**.
- Sim. Ele gostou muito. E após milhares de anos, Ele encontrou alguém a quem pudesse dar uma entrevista. Alguém que conhece os erros e as injustiças que lhe tem sido atribuído.
- Então, serei para Ele uma espécie de advogado, um advogado do Diabo?
- Sim.
- E o que receberei em troca?
- Conhecimento e paciência para suportar as idiotices dos religiosos.
- Bem, já é um bom começo, pena que em meu país o conhecimento vale tão pouco!
- Irei contactá-lo novamente. E darei o local e a data do encontro. Aguarde – disse-me.
- Ok. Dê lembranças ao Diabo. Diga que Ele tem bom gosto – e desliguei o telefone às gargalhadas.

Os dias passaram, e esqueci totalmente da brincadeira. Porém, um dia, enquanto estava enfrente à televisão, recebi um telefonema:

- Alô.
- Você ainda se recorda de nossa última conversa? – disse alguém do outro lado da linha.
- Que conversa?
- Do encontro programado.
- Que encontro?
- Do encontro com o Diabo.
- Ah, sim, desculpa.

A brincadeira passada ainda fazia-se render. E eu ainda continuava a mantê-la viva. Disse-lhe, então:

- Continuo aguardando.
- Finalmente, hoje nos encontraremos. Aguarde um taxi em frente de sua casa, às três horas em ponto da madrugada. Ele lhe trará até nós.
- Sim, vou aguardar.

Um táxi preto, com vidro fumê, parou enfrente ao meu prédio, como o combinado, às três horas da madrugada. A placa, curiosamente, ostentava o número 666.

A noite e a brincadeira bem produzida, prometiam – então, pensei.

Ao entrar no carro, eu não conseguia ver o motorista, pois um vidro escuro nos separava. O taxi rumou, então, para o centro da cidade. E logo estávamos enfrente a principal igreja da cidade: Basílica de Nazaré.

Ao lado dela um sujeito de preto me aguardava.

Era um sujeito alto, bem apessoado, que tirando os óculos escuros, nada de diferente aparentava.

Disse-me, com voz extremamente grave: - Seja bem-vindo. Meu nome é Belzebu.

E em seguida entramos por uma portinhola que havia ao lado da igreja.

Comentei a ele que jamais tinha visto tal portinhola, mesmo passando por ali quase todos os dias. O qual me respondeu de imediato: - O Diabo tem seus segredos!

A pequena porta nos conduziu a um longo corredor iluminado por tochas em todos seus lados. Ao fundo do corredor uma imensa sala, iluminada por luz de velas negras, tendo no centro uma grande mesa, em que se encontrava um sujeito, sentado, trajando um longo hábito, com capuz. E sem levantar a cabeça, saldou-me ao entrar:

- Seja bem-vindo ao meu último exílio. SOU AQUELE QUE TODOS TEMEM SEM CONHECER. Sou a luz e a treva. O Grande Todo. Aquele que a própria morte teme.
- Eu, sou apenas aquele que escreve: um simples escriba.

Olhava discretamente para todos os lados, para ver as pessoas que deveriam estar escondidas a nos observar. Mas, por mais que olhasse atentamente, nada via. A brincadeira parecia, mesmo, ser muito bem feita, tanto que não via a hora de perguntar pela aquela produção cenográfica. Por seus detalhes muito bem feitos.

Ficava a pensar de quem era a obra, quem a teria organizado, quem a teria planejado. Pensei por um momento que poderia ser uma festa surpresa. Mas não era um dia especial em minha vida, como aniversário. O que então seria?!

O que melhor poderia fazer era segui-la e ver em que daria.

Disse-lhe, então:

- Observei que a placa do carro é 666, então estava errado, este é mesmo o número do Diabo?
- É o que dizem, mas para mim não tem o menor sentido. Uso-o apenas para identificar-me, mas poderia ser qualquer outra coisa. Embora você esteja correto em seu texto.
- A tradição o associa ao sol, e figurativamente aos seres iluminados, pois 666 é a soma dos números de 1 à 36, dos números do quadrado mágico, que representa o sol.Representa, portanto, também Lúcifer, palavra que em sua origem, latim, significa aquele que traz a luz. Nada há nisso de mal, pois é um belo título, que tem sua origem no nome da estrela da manhã, o planeta Vênus, que antecede sempre ao amanhecer e pôr do sol.

Cristo também o usou, a se referir como estrela da manhã, como aquele que traz a luz, como o iluminado, enfim, como Lúcifer: “Eu, Jesus, ... Eu sou a raiz e o descendente de Davi, sou a ESTRELA RADIOSA DA MANHÃ.” (Apocalipse 22:16).

Mas para você, certamente, é apenas mais uma velha história.

Nesse momento, notando que seguia a cena à sério de mais, enveredei para um tom mais jocoso, pois aquilo era para se divertir, e eu deveria me divertir mais. Então, perguntei:

- É verdade que és a criatura mais velha que existe, até bem mais que minha avó?

De imediato aquele sujeito pareceu se inflamar de ódio, soltando um grito ensurdecedor, ao qual nada deu para ver seu rosto, mas apenas sua imensa boca, que fez tremer a mesa e a parede. E em seguida, pôs-se falar palavras incompreensíveis, que pareciam ser latim. Pensei comigo, ainda bem que não perguntei sobre seus chifres! E ri em silêncio.

Em seguida, me respondeu:

- SOMENTE AQUILO QUE MORRE POSSUI IDADE. PORÉM, EU SOU O PRÓPRIO TEMPO, A ETERNIDADE.

E após algum tempo em silêncio, em um momento mais calmo, tal brincadeira trouxe- me à memória uma velha lenda de minha cidade, que afirma que uma imensa cobra dorme à anos sob a velha igreja, e todas as vezes que esta levemente se acorda faz tremer a cidade. Perguntei-lhe, então:

- Qual o motivo de se encontrar em uma igreja católica, e não em outra, como em um templo evangélico?
- Pelo menos aqui não usam tanto meu nome para ganhar dinheiro. Além disso, há o vinho!
Dois mil anos de Cristianismo, pelo menos valeram para criar o gosto por um bom vinho. E o vinho dos padres são os melhores!

E enquanto saboreava o vinho, tirando gosto com as hóstias, suspendeu a grande taça, brindando a mim. E como por um passo de mágica, soltou a taça deixando-a parada no ar, enquanto folheava o grande livro que havia na mesa. Disse-me, então:

- Sei que não acreditas em mim. Mas, veja, eis o livro da vida e da morte. Seu nome, como os de todos, está aqui. Bem como grande parte de sua vida.

E após falar isso, levantou-se em direção a mim. Pôs sua mão sobre minha cabeça, e com uma grande nitidez, pude ver toda a história do mundo, de seu princípio àquele momento que me encontrava ali. Em seguida, pôs-se a contar segredos da minha vida, que nem mesmo eu sabia. Bem como fantasmas de meus entes queridos, alguns que eu nem mesmo conhecia, puseram-se a contornar-me dizendo segredos aos meus ouvidos. E assim, pude ver, finalmente, de que se tratava. Tudo era absolutamente verdade. E caí de joelhos...

Ele em seguida, perguntou-me:

- Queres saber algum segredo?
- Sim, o maior de todos. Conte-me sobre a morte. Há vida após a morte?
- Nada posso dizer-lhe.
- Mas, Você não conhece tudo?
- Sim. Conheço. Mas pense na morte como num final de um grande livro: se eu contar-lhe o segredo, o final, estraga a história! Pois sou também o autor deste Grande Livro. E tudo que posso lhe dizer é: não se assuste, a morte é um grande alívio!
Mas, você pode descobrir por si próprio.
- Mas dizem que não é possível ter certeza, em tal assunto.
- Besteira – disse-me, Ele.
- Olhe.

Neste momento, o corpo de um homem apareceu entre nós.

- Quem é ele? – perguntei ao Diabo.
- Não importa. O que importa é que está morto.
- E o que diria este sobre a própria morte? Poderia este corpo nos relatar algo?
- Muitíssimo, meu caro.

E após isto, o corpo começou a apodrecer, em nossa frente, mudando de tonalidade, inchando, se liquidificando, sendo absorvido por bilhares de bactérias e vermes, tornando-se apenas ossos. E, finalmente, secando, até ao pó.

Em seguida, o Diabo, disse-me:

- Um cadáver conserva sua estrutura de organismo vivo por pura inércia de seu material. Pouco a pouco seu material é absorvido pelo todo. Pois, “o cadáver não é senão o conjunto dos materiais da vida: um pouco de água, de carvão, de azoto, de ferro”, como já foi bem dito.
A vida é “o que mantém, direta ou indiretamente, a própria forma do organismo”, em sua luta diária para não se entregar ao todo. A vida, pois, é o extremo da morte.
- Sim, mas nada há de novo nisso.
- Calma, meu amigo – disse-me, com a voz extremamente calma. E continuou:
- Por outro lado, há na natureza um ponto de equilíbrio, em que os extremos se assemelham e se completam, mantendo o universo, sua unidade (uni), apesar de sua infinita variedade (verso), fazendo com que este não se destrua, mantendo o equilíbrio de seus elementos e de seus excessos, e conservando em todas as coisas sua identidade - e continuou:


Por isso, não é de estranhar semelhanças nas coisas e em seus excessos. O que faz com que a mais alta e a mais baixa temperatura, queimem; que a falta e o excesso, façam mal; que o imensamente grande e o pequeno, se assemelhem, como no átomo e em seu semelhante sistema solar; que a infância e a velhice tenham pontos em comuns, na diminuta quantidade de pêlos e dentes, na pele enrugada, etc; que o silêncio e o mais alto som sejam inaudíveis; que o grande e o pequeno, sejam extremamente mortais, como um elefante e um vírus; que a mais extrema fealdade e beleza chamem atenção; que o zero e o número infinito, não sejam divisores de nenhum outro número; que a falta e o excesso de água, façam mal, o primeiro causando desidratação, o outro afogamento; que a ausência e o excesso de luz, nos torne cegos; que o óbvio e o incomum, torne-se de difícil explicação; etc... e, finalmente, que a vida e a morte possua muito em comum.
Este é o caminho, meu caro, aplique este princípio e entenderás cada vez mais sobre a morte. Isto é tudo que desta posso lhe ensinar.
- E quanto a estas doutrinas que explicam sobre a morte?
- Tudo balela! Meras projeções inconscientes.
- Fico a pensar o que pensariam outras pessoas a ouvir o que dizes. Certamente, não acreditariam em nada que dizes, pois para elas o Diabo é o pai da mentira.
- Certamente. Mas foram seus líderes religiosos que mentiram. Se há um criador da mentira, esse criador é o homem, em sua busca desenfreada por poder.
Primeiro, para aumentar o poder de suas crenças, tentaram destruir os deuses pagãos, distorcendo seus significados para seus seguidores, tornando-os seres negativos, sem nenhum valor positivo. E assim impedindo seus seguidores de conhecerem e respeitarem outras crenças. Associando tais deuses a esta imagem falsa, criada simplesmente para amedrontar seus seguidores, do Diabo, como um ser puramente malévolo. Para tanto, juntaram símbolos, que para outras religiões eram, e são sagrados, criando assim tal imagem.

E enquanto falava isso, abaixou o capuz expondo seu rosto. Ao qual reagi com imenso susto! Pois mesmo conhecendo sua história, me espantou saber que o Diabo possui rosto humano.

Disse-me:

- Por acaso, esperavas pele vermelha, barbicha e chifres? Quanta ignorância! Agis como um homem qualquer!
- É que mesmo sabendo sua história, torna-se difícil livrar-me destas idéias preconceituosas.
- Sempre me surpreendeu que pintassem um quadro horrível de Mim. Imagine: Eu todo-poderoso, querendo capturar novas almas, iria lhes atrair com uma imagem horrível, cheirando a enxofre? Não seria melhor assim...

Neste momento transformou-se em uma linda mulher, como poucas que já vi na vida, com um corpo escultural, esplendoroso!

- Ou assim...

Transformando-se em um belíssimo carro, como aqueles que são intensamente desejados.

- Eu não possuo rosto, nem formas, porém, tomo a forma que quiser. E digo-lhe, jamais tomaria uma horrível forma. Esta foi criada para distorcer outros deuses.
Veja, por exemplo, os chifres, para antigas culturas, estes representavam símbolos de sabedoria, em seus deuses. Assim como outros, como o tridente. Mas que hoje representa esta imagem asquerosa do Diabo. DEPOIS EU QUE SOU O MENTIROSO!
Quanto a isso, esta falsa imagem minha está ligada ao imenso orgulho humano, pois estes crêem que são a coisa mais importante do universo, e que eu apenas teria um único pensamento: tentá-los para possuir suas mentes, e assim ofender a deus, com a idolatria de sua mais importante criatura, como se Eu não tivesse coisas mais importantes a fazer!
Veja estes filmes, em que possuo a mente de jovens meninas, como me retratam idiota! Para que perderia tempo em possuir mentes tão insignificantes, sem nenhum poder, quando poderia possuir mentes poderosas, como as de alguns presidentes, e causar tantos danos. PARA QUE PERDER TEMPO PROVOCANDO TREMELIQUES, SE POSSO CAUSAR TERREMOTOS!, meu caro.
- Então, por que continuas conservando o nome Diabo?
- Como disse antes, é apenas um modo de me identificar, pois Eu mesmo não tenho nome. Assim, nomes como Demônio, Satã, Mefisto, Satanás, Samael, ou os populares, Capiroto, Coisa-Ruim, Sete-Peles, Capeta, Demo, Cão, etc, não têm para mim o menor sentido, são apenas nomes.
- E o termo Lúcifer, teria algum sentido?
- Ah!... este, sim. Lucis Ferre: Lúcifer, AQUELE QUE TRAZ A LUZ. É um belo nome! Com um belo significado. Este sim, cabe à mim. Sou Eu quem traz o conhecimento aos homens.
- Contudo, mesmo este termo tornou-se distorcido para os cristãos.
- Pobres coitados, procuram a luz, enquanto mais se atolam nas trevas da ignorância!
São adultos que possuem temores de criança! Este é mais um erro de seus líderes religiosos. Não vêem que é um magnífico título! Até mesmo seu deus, Cristo, ostentou-o.
- E quanto ao outros deuses?
- Não há outros deuses. Sou o único Deus. Sou a consciência do Cosmo - e continuou:

Atar, Resheph, Anath, Ashtoreth, Ahura Mazda, Nebo, Melek, Ahijah, Ísis, Ptah, Baal, Baco, Astrarte, Ares, Hadad, Hermes, Hera, Dagon, Yau, Amon-Ra, Ártemis, Apolo, Osíris, Molech, Arianrod, Morrigu, Jupiter, Jano, Sekhmet, Govannon, Gunfled, Geb, Dagda, Dionísio, Geush Urvan, Ogurvan, Dea Dia, Iuno Lucina, Inanna, Saturno, Furrina, Cronos, Engurra, Belus, Ubililu, U-dimmer-na-kia, U-sab-sib, U-Mersi, Tammuz, Vênus, Belis, Nusku, Néftis, Aa, Sin, Apsu, Elali, Mami, Zaraqu, Zagaga, Nuada Argetlam, Nut, Tagd, Goibniu, Odim, Ogma, Marzin, Mitra, Marte, Diana de Éfeso, Ra, Seth, Robigus, Plutão, Ptah, Vesta, Zer-panitu, Zeus, Zam, Merodach, Minerva, Elum, Enki, Marduk, Mah, Nin, Perséfone, Istar, Lagas, Nirig, Nebo, Em-Mersi, Assur, Asalluhi, Beltu, Kusky-banda, Nin-azu, Qarradu, Urano, Ueras, Vesta, Khonsu, Afrodite...

Todos estes deuses - e essa é apenas uma pequena lista de centenas de milhares de deuses - foram deuses de culturas poderosas, em seu tempo. Todos foram cultuados e temidos. Sacrifícios foram feitos em suas homenagens. Pedidos e rezas eram lhes enviados. Gerações se dedicaram a construir-lhes imensos templos. Sacerdotes se dedicaram a lhes interpretar suas vontades, seus desígnios. Desafiar suas vontades era inevitavelmente a morte. E onde estão agora? Estão todos esquecidos, como seus povos. MAS EU CONTINUO VIVO, POIS SOMENTE O QUE NÃO TEM NOME NÃO PODE SER ESQUECIDO.
- Sim. E agora temos Cristo – disse eu a Ele.
- E o que diferenciaria esta nova crença das antigas? Todas foram e são formas de dominação.
COMO SE PODE CRER EM ALGO QUE LHES FORA IMPOSTO À FERRO E FOGO, A CUSTA DE TANTO SANGUE!!! Da conversão imposta pelo imperador Constantino, aos seus súditos, ao Cristianismo, à conversão dos índios neste tempo. Incluindo as cruzadas que mataram e expulsaram milhares de não-cristãos de Jerusalém, à Inquisição, que matou milhares de pessoas, por não compartilharem de crenças cristãs. Incluindo também a total dominação e manipulação da cultura e do conhecimento, durante centenas de anos, em favor da religião cristã.
QUE CRENÇA É ESSA QUE PRECISA DE TANTA FORÇA PARA CONVENCER OS HOMENS DE SUA VERDADE!!! Não a bastaria por si própria?
As religiões sempre foram usadas para manipular o povo, lhe roubando a energia necessária para transformar a realidade. Os antigos gregos já sabiam disso, para eles religião era coisa para mulheres e escravos. Era um instrumento de poder para acalmar os ânimos dos menos favorecidos, como estes, e assim manter a ordem.
- Então, não há nada de positivo nelas?
- Há, sonhar é preciso!
- E o tal falado encontro, no deserto, entre Cristo e o Diabo?
- Na verdade nunca houve tal encontro. O que lá se comenta é a luta entre o desejo espiritual do homem e os desejos e necessidades da carne. Tais escritores usaram o Diabo como uma personagem para simbolizar os desejos e a luta contra as tentações da carne.
- Tudo é mentira? – indaguei imediatamente a Ele.
- Seria um exagero afirmar isso – respondeu-me. Mas, pode-se dizer que em grande parte, sim.
Ainda lembro quando começaram: eram apenas um punhado de simples seguidores amedrontados e castigados com a dura realidade. Procurando por todos os cantos por alguém que pudesse lhes dá esperança, como ainda hoje. Até que surgiu um homem, em meio a tantos outros, um certo Josué, ou Jesus, como queira, já que ambos os nomes possuem o mesmo significado: salvador, que os liderou com palavras de conforto.
Sua doutrina se espalhou, como tantas outras, entre o povo humilde. Mas, ao morrer teve sua memória e doutrina traídas pelos que ambicionavam o poder, pois logo viram em sua doutrina um modo de manipular o povo. Aí começaram as mentiras!
Logo, ambicionaram um maior crescimento para tal crença, ambicionando torná-la universal, e assim, criaram uma nova biografia para Cristo, condizente com outras crenças, a fim de seduzirem fiéis de outras culturas. E isto é fácil de ver, por exemplo, compararam Cristo a Moisés, o líder judeu, em seu nascimento, pois como Moisés, fizeram-no ser perseguido por um rei (Herodes), que temeroso por uma profecia, tentou matá-lo para que este não perdesse o poder.
Adaptaram-no, também, à cultura grega, persa e romana, como aos seus imperadores, transformando-o, em deus, como se pode ver em seus próprios escritos cristãos, que tal fato era bastante comum em tais povos, pois um de seus escritores relata claramente isso, quando diz que os próprios cristãos Paulo e Barnabé, foram chamados de deuses por um desses povos.
- Sim, nos Atos dos Apóstolos de Lucas, está descrito.
- Tal fato, era como uma homenagem para os persas, que divinizavam seus líderes políticos e religiosos.
Os gregos já estavam bastante acostumados, em suas mitologias, com seres metade homem metade divino, e mesmo com a divinização total de alguns heróis gregos.
Os imperadores romanos se auto-divinizavam, como uma forma, não apenas de orgulho, mas de manipular o povo, pois a ordem de um deus não poderia ser recusada.
Fizeram-no nascer também de uma virgem, coisa que para os povos egípcio, romano e indiano, não era novidade, por exemplo, o deus indiano Krishna nasceu de uma virgem chamada Devanaguy. O deus egípcio Hórus também teria nascido de uma virgem. Bem como o deus cultuado em Roma, Mitra, de origem persa. E, finalmente, a fim de não Me alongar tanto, na comparação de sua história à história de outros deuses, o associaram aos deuses que venceram a morte, como Mitra, Hórus, Dionísio.
- Quer dizer que transformaram Cristo em um mito?
- Sim. Principalmente para ser um obstáculo ao maior inimigo da cultura Greco-romana, daquele tempo, o Judaísmo, que se expandia assustadoramente, e que ao mesmo tempo se mantinha fechado para outras culturas, como ainda hoje.
E se o que tornava forte a cultura judia era a sua religião, por que não usá-la como arma contra os próprios judeus, distorcendo-a, criando um novo judaísmo capaz de atrair simpatizantes do próprio judaísmo, tornando-o mais passível de influência da cultura Greco-romana.
- E assim nasceu Cristo como mito.
- Sim – disse-me o Diabo, completando:
- E para tanto, tornaram Cristo filho do deus de Israel, a partir de uma própria profecia judaica. Tendo, no final, os próprios judeus optados em levá-lo à cruz, tornando-os, de modo indireto, inimigos dessa nova religião, o Cristianismo.
Bela solução, não acha? Não apenas criaram uma forte contensão à expansão do Judaísmo, como ainda os tornaram inimigos desta nova religião! O que explica em grande medida, por que mesmo ainda hoje, nenhum documento foi achado que comprove a existência de Cristo.
E uma vez estando tudo pronto para dominar outras religiões - incluindo textos, com fatos maravilhosos, como milagres – estavam, consequentemente, prontos para dominar o mundo, sonho tão cultuado por vários imperadores, Dario I, Dario III, Xerxes, César, Felipe da Macedônia, e, finalmente, Alexandre, o grande, ou mesmo Hitler. Porém, para tanto, tal doutrina esperava um imperador, que surgiu na figura de Constantino.
A partir de 315, os primeiros símbolos cristãos começam a aparecer nas moedas do império de Constantino. Em 323 as últimas representações pagãs são destruídas completamente. Tem início aqui, toda a dominação que ainda vemos hoje.
É como eles próprios dizem “não há coisa alguma escondida, que não venha a ser manifesta: nem coisa alguma feita em oculto, que não a ser pública.” (Mc 4:38-21). E Eu completaria, nem que seja pelas mãos do Diabo!

E tendo falado isso, aproximou-se novamente de mim, pondo a mão em minha cabeça, dizendo-me ao ouvido:

- Mas o resto fica para a próxima.

Acordei em um banco da praça em frente à igreja, com um guarda a me chamar. O dia já estava bastante claro. E ao passar ao lado da igreja, procurei pela pequena porta, sem nada encontrar.
Atordoado pelo sol, e o barulho da cidade, caminhei em rumo de minha casa, tendo sempre a sensação da confusão de um sonho em minha mente. E em quanto vasculhava os bolsos, a fim de encontrar algum dinheiro para minha condução, encontrei um cartão, em que estava escrito:

Diabo. Favor, aguardar.


* Artigo publica no site cerebrau.com.br
** Artigo publicado no site cerebrau.com.br

sexta-feira, 8 de julho de 2011

PACTO (de Marcos Salvatore)


Carnaval eu apronto,
Eu quero, eu danço.
É quando me sinto pronto
Pra chorar de tanto rir.

Com a morte do canalha,
O Tristonho, enfim
Tudo ficou mais triste, mais claro.

De repente,
Mais noturno de um soturno raro...

E também as paisagens,
E as esquinas de botecos fétidos,
E as cachorras das lixeiras,
E o meu vale-transporte.

Caminho pisando em insetos,
Preservativos usados,
Latinhas de samba
da Sessão de Gala.

Tudo letra de canção.
Entro e vejo o seu caixão:
- Puta-que-pariu!

Começo a rir;
Quase me mijei de tanto achar nada engraçado...
Foi o Porra quem pediu antes de bater as botas:
- Se eu for dessa, cê já sabe:

Depois da esmola e da ressaca

Enche a cara e aparece lá no meu velório,
Veste uma bermuda,
Puxa a minha mãe pra dançar um tango; o diabo.
Pinta o caneco Xará.

De repente,
E, de preto, firme como uma rocha: a irmã?!
Que peitinhos!
Pequenos! Macios!

Unidos como dois irmãos,
Dois amigos.

Anorexa, Tu! - 2ª Parte(de Marcos Salvatore)



Sonhei com dunas e agora acordo com a  baía lá fora, tão perto daquela cidade, com a sua identidade panorâmica, curvas de um cais, madeira da embarcação em atrito com a escura água, gerando dobras à revelia, como bucetas ingênuas de seu tato tripulante, seu relevo, sua relevância hereditária, sua função. A estátua de um Cristo indiferente contempla o pôr-do-sol, de costas para a aldeia e sua gente, tentando limpar seus olhos da tempestade de areia. A ausência inflama e excita, é pungente. Desorienta, ressente a memória confusa. E eu não sabia que o rio era assim. O único peso sou eu, incosciente, colidindo contra rochas inexistentes. Minha pele tem odores diversos, e a transpiração e as batidas do peito me impulsionam para o esquecimento. Não me lembro de nada, de nada. Tudo que sinto é a falta dela, da pele dela, do que escorria pelas suas pernas em contato com a minha língua e lábios e dentes; de uma coisa qualquer passada a mim ás pressas. Deixo que falem para ter tempo de pensar no que dizer. O que me torna meio estúpido, como um de dois gêmeos que não sabe qual dos dois quer ser. Até meu coração... pulsa em silêncio.

O DIA DAS MÃES

Depois do interrogatório, Seu Iraque, digo, Eráclito, havia chegado a várias conclusões: Vila assistia muito CSI e Doutor House, Castro queria ver sangue e não entendia nada de Rock, Aloísio não saía do telefone porque se apaixonava a cada quinze minutos, Bocage andava comendo Dona Aldenora, que por sua vez era ninfomaníaca e o rapaz desmemoriado se chamava Sávio.
- Mas que porra de nome de cachorro é esse? (...) Tomara que minha mulher não descubra que eu ando bebendo escondido. (...) Sem identidade. Ô Vila, e o local do crime?
- Bem guardado Doutor. A porta estava arrombada, passei um cadeado. Estou com as chaves. Ninguém entra nem sai de lá.
- E o presunto, porra? Quero saber do presunto.
Entra o soldado Aguinaldo. Traz consigo, arrastadas pelos cabelos, duas senhoras.
- Tá aqui “Dotô”, aquelas duas do puteiro de mães.
- No, no. Minha senhora, como é que vocês me vêm com essa? Imagina. - mastiga uma pedra de gelo - Seduzir crianças deficientes?
Aguinaldo explica, em detalhes, que existia um revezamento entre as mães para satisfazer sexualmente os filhos (e filhas) umas das outras. A polícia chegou descendo a rimpada em todo mundo e encontrou essas duas sendo enrrabadas por dois garotos com síndrome de down.
- Tá tudo errado – desabafa o Delegado. Recolhe, recolhe. Mas antes deixa as duas uma meia hora no xadrez das entendidas. Ô Aloísio, sai do telefone, Aloísio.
De repente as duas mulheres de jogam no chão e começam a pegar santo. São rapidamente seguradas por Vila e Castro. Bocage e Dona Aldenora correm e se trancam no banheiro. Seu Iraque, digo, Eráclito, pega uma cadeira pra se defender. Soldado Aguinaldo faz o sinal da cruz enquanto Aloísio calmamente faz balões com seu chiclete. O garoto permanece imóvel.
Enquanto as duas se viram do avesso grunhindo e babando, Aguinaldo, correndo para trás da mesa grita amarelado para o delegado: - E agora “Dotô”?
- Agora? Chama a merendeira. A merendeira, porra!
Aguinaldo dá uma carreira escorregando pelo corredor e traz consigo uma mulher pequenina: era a Dona Bajica; cabocla do Marajó, parteira, mãe de quinze filhos, viúva de três maridos e médium não desenvolvida. Estava com uma maquiagem carregadíssima, pois já estava de saída para vender vatapá, tacacá e caruru num baile da saudade. Chega muito invocada:
- Que foi, Culhão? Não tá vendo que já vieram me buscar na bicicleta.
Depois de virar o copo de “suco” todo de uma vez e soltar um arroto de ópera, Seu Iraque, digo, Eráclito, explica o caso das coroas possuídas em questão.
Dona Bajica examina e consegue decifrar o que estava acontecendo. Pergunta pra uma das duas: - Que merda é essa, porra?
- Eu sou um “espríto”, eu. Quem manda aqui sou eu. E eu vim fazer estrago, eu.
- Isso eu já sei. Quero o nome. – “Que caralho, ainda perco essa carona”. Vai pagar meu táxi, Iraque.
- Eu... me “mataro”, eu. Me “mataro” lá nos Estados Unidos. Mas eu não morri. Como eu não morri, eu fiquei assim, andando à toa, por aí...
Enquanto ouviam a conversa toda, Castro fala baixo para Vila: - Olha aí, dos Estados Unidos. Aposto que esse também é a favor da divisão do Estado.
- Tá escuta, só. Um gringo. Sei, sei. E tu te agradou dela e coisa e tal. Fez ela de Xuxa pra comer a criançada. E a outra? Sim, você, que quase não fala, só fica aí babando.
- Eu sou outro “espríto”. Eu era vizinho desse daí nos Estados Unidos.
- E cadê o sotaque, merda? Enfiou no cú? Ô Culhão, pode sentar a peia que isso aqui é tudo truque de piva.
As duas se olham e tentam correr. Mas Vila e Castro descem o tapa em cada uma e saem arrastando aos pescoções pro xadrez das angolanas. Aloísio, mesmo no telefone também dá “uns copinho” nas tias. Aguinaldo se benze de novo, quando dona Bajica se aproxima do garoto e acaricia os seus cabelos com uma ternura de mãe, diz algo em seu ouvido, depois se espreguiça e sai.
- Humhum. Pois bem. Minha Avó sempre dizia que as pessoas enlouquecem por uma boa razão, mas isso é outra história. Mas continuando Vila, e o cadáver lá na cama?

O CASO DO SÁVIO

- Fizeram o diabo, depois esganaram. Sinais de luta, sodomia, vestígios de maconha e pó. A cama suja de merda e mijo, por causa do sufocamento. O garoto só portava uma beata de maconha, provavelmente não era dele, a arma era de brinquedo e nenhum vestígio ilícito, ele está limpo, apenas álcool. Sinceramente não faço idéia de como ele chegou até lá, nem porque correu. Provavelmente estava no lugar errado na hora errada. É preciso mais de uma pessoa pra fazer o estrago que foi feito.
- O garoto não se lembra de nada. Mas ele é a chave. (...) ô Aloísio, larga o telefone e vem aqui.
- Só um minuto “Boss” (...) Tchau princesa, tenho que ir... não, desliga você primeiro... não, desliga você... você primeiro... manda um beijo com barulhinho... Hum... Pois não, Doutor.
Castro acende um cigarro emprestado de Vila (estava tentando parar de fumar), dá uma baforada e sugere:
- Na minha opinião, é tudo licença poética do moleque. Vamos dar um samba que ele vai dizer até o resultado da loteria de amanhã.
Aloísio intervém: - “Calma, Mêu. Pra mim tá na cara que doparam o garoto pra ele entrar pelo cano. Concorda Senhore?”
Bocage, que vinha da outra sala com Dona Aldenora, que retocava o batom, arruma a gravata e define triunfante:
- Trago comigo a solução para vossas senhorias. Depois do meu Tranca Rua muito conjeturar aqui com a Pomba Gira da Dona Aldenora, cheguei a conclusão de que devemos reconstituir o crime.
Seu Iraque, digo, Eráclito, olha para os outros:
- Como assim? Mas o pequeno não lembra de nada.
- É simples. Basta que o suspeito nos diga o último lugar onde esteve e partimos em diligência à paisana, à cata de pistas e novas evidências. Aposto uma grade no Mauro que provo a inocência do réu até de manhã.
- Disfarçados? - pergunta Vila, preocupado. Uma grade?
- E desarmados, pra não gerar suspeitas. Tudo na limpeza.
O delegado andava de um lado para o outro: - “Hum, pode dar certo. Tá fechado. Mas vamos precisar do Wanderley. É o melhor investigador do pedaço, conhece todos os puteiros da cidade”. Ô Aguinaldo, vai até a Tabajara buscar o Wanderley (...) e diz pra ele não se esquecer da “cannabis que te cativas”, ouviu? Da pintada.
- Garoto. Qual o último lugar que você lembra de estar?
Sávio se levanta calmamente, tira a camisa e as enormes cicatrizes ficam à mostra. Cicatrizes só comparáveis às causadas por tortura institucional. Olha para todos, sem medo.


CONTINUA...

terça-feira, 5 de julho de 2011

Filhosofia XII (de Rodrigo Bentes Diniz)

Trilha Sonora: Mora na filosofia, Caetano Veloso

Quem é ridículo, teme parecer ridículo.

Se existisse Justiça, não existiria polícia.

Quem sabe que nunca vai ser preso, é claro que mata ...

Só os pobres precisam provar sempre ...

Quem precisa cometer crimes para parecer que é Homem, pode ter certeza esse é ...

As pessoas se ofendem quando atacam sua Honra, mas não tem nenhuma vergonha em se venderem ...

As pessoas acham que Deus é bobo, que no seu último suspiro a pessoa vai dizer que se arrepende e Deus vai levá-lo ao céu.

O raciocínio é simples: não adianta servir em todos os exércitos do mundo, transar com todas as mulheres; o que caracteriza se uma pessoa é homem ou não, é apenas, ter transado ou não com alguém do mesmo sexo.

O maior pesadelo é estar acordado sem paz na consciência.

Você sabe que as coisas poderiam ser diferentes, e justamente por isso, você as repete no presente e não vê o futuro sem elas.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O CARTEIRO - Parte III (Final)

(por Marlon Vilhena)

Trilha Sonora: Dirt; Grind; Them Bones; We Die Young (Alice In Chains).


         Aos poucos ambos foram se acostumando à extrema claridade em suas faces, bastava não mirarem diretamente sua fonte. Era uma boa maneira dos membros do grupo evitarem ser identificados por quem chegava ao armazém.
         como sabem, o dinheiro de vocês está sendo transferido nesse instante para suas contas, não se preocupem. mas preciso que permaneçam aqui dentro até que tenhamos feito a movimentação do pacote para um local seguro. alguma pergunta?
         O barulho da chuva sobre as paredes de metal de todo o armazém aumentou sutilmente, contudo a voz daquele que se comportava como líder do grupo soava clara como antes, sem alteração na entonação ou no timbre. C. passava uma das mãos sobre a barriga, tentando aliviar inutilmente o golpe recebido, e não mostrava disposição para perguntar qualquer coisa. Assim como M., queria somente sair dali sem nenhuma outra surpresa pelo resto da noite.
         não, senhor.
         muito bem, senhor M. vejo que continua sendo inteligente. e continuamos sendo gratos por seus bons serviços.
         esse foi meu último pacote.
         Mesmo sem poder distinguir qualquer um dos presentes além de C., sua audição denunciou alguns passos pesados na direção de onde estava. Porra, devia ter dito aquilo naquele momento?
         não compreendo.
         A voz do líder estava a menos de um metro de distância, e mantinha-se calma, mas em um volume um pouco mais baixo.
         estou me aposentando.
         ora, por favor, senhor M., isso eu compreendi. o que quero dizer é que não captei o sentido do senhor desejar isso agora, quando estamos indo tão bem. há algo lhe incomodando?
         Algo me incomodando?, pensou M. Esse filho da puta só pode ser um péssimo piadista.
         De repente, um barulho alto vindo de trás, como uma batida e alguns gritos curtos. Pareciam estar tendo alguma dificuldade para carregar o corpo. Ou então era outra coisa. O líder de voz mansa deu o comando para se apressarem. M. ainda continuava com a sensação de que algo estava muito errado por ali. Seu parceiro C. mantinha-se quieto, porém tremia quase imperceptivelmente, talvez de frio por conta da chuva, talvez de medo do que não podia ver atrás de si. Devia estar com a mesma sensação de perigo, pois resolveu abrir a boca naquele instante, o que foi uma péssima ideia.
         o que é que está havendo por aqui? que merda é essa?
         Tentou virar o rosto para a direção de onde viera o barulho, e uma dor aguda causada por um golpe pesado subiu do lombo de sua espinha até a nuca. Curvou os joelhos praguejando e levando uma das mãos às costas, enquanto se apoiava com a outra sobre a terra batida.
         esse novato não sabe mesmo se comportar.
         Ao menos agora M. sabia que C. não fizera muito daquele serviço com aquela gente, e também o tratamento bruto que recebia poderia explicar sua dificuldade de locomoção na perna. O que não ajudava em nada, e no momento duvidasse de que o parceiro teria nova chance de trabalho com eles depois daquela noite. Também sentira uma vontade enorme de se virar para ver o que ou quem fazia tanto barulho em meio à chuva. Ouvira dois ou três homens dando ordens, como se tentassem controlar alguma espécie de animal, entretanto continuavam com dificuldades. Ouvira grunhidos novamente, mas não conseguira discernir que tipo de criatura emitiria aqueles sons.
         ouça, eu só quero ir embora. por que tudo isso?
         sinto muito, mas acredito que essa maldita chuva pegou a todos nós de surpresa. já vai acabar.
         filhos da puta. bando de filhos da puta.
         Isto foi C. quem disse, arfando sobre o chão, para logo depois ter a boca estourada por um novo e duro golpe com o que parecia ser um cassetete. O sangue espirrou dos lábios, enquanto seu corpo caía pesadamente para trás.
         quer virar comida, palhaço?
         Comida? M. não compreendeu o que o capanga por trás da lanterna quis dizer com aquilo. Embora o líder do grupo quisesse demonstrar que tudo estava sob absoluto controle, não era de forma alguma o que ele percebia em toda a movimentação ao redor. C. continuou deitado, com as mãos procurando estancar o sangue do rosto, parecendo compreender que, quanto mais silêncio por ali, melhor.
         é melhor seu parceiro se comportar, senão as coisas podem ficar muito piores.
         eu nem o conheço. foram vocês que o contrataram. nunca vi o rosto de nenhum de vocês, portanto acho que podemos terminar nosso contrato por aqui, sem prejuízos para ninguém.
         falaremos disso mais tarde. ajude-o a se levantar, por favor. isto está ficando patético.
         M. estendeu a mão para C. postar-se de pé novamente, e foi quando todos ouviram o grito de nítido pavor de um dos membros do bando sob a chuva, seguido de um tiro. A distração dos outros que portavam as lanternas durou um segundo ou pouco mais, mas foi o suficiente para que M. buscasse rapidamente, com o canto dos olhos, a visão do que acabara de acontecer. Ainda segurava o braço do parceiro surrado e não pôde deixar de apertá-lo fortemente pelo susto.
         A alguns poucos metros no chão, ao lado de uma van, o que parecia ser um homem nu, completamente insano e com uma coleira metálica em volta do pescoço, abocanhava o rosto de um dos capangas, despedaçando facilmente seus olhos e nariz com dentes grandes e afiados como pregos. A vítima ainda tentou dar um último grito, mas se calou para sempre enquanto os braços e pernas produziam espasmos involuntários.
         Foi muito rápido o que vira, mas o sangue de M. pareceu parar dentro de suas veias.
         Aquela coisa não podia ser humana.
         O caos completo se instalou pelo terreno do galpão. Os membros do grupo saíram de suas posições, os que carregavam as lanternas deixaram-nas cair, claramente desnorteados com a cena que se desenrolava debaixo da chuva. M. correu para os fundos da construção, amparando C. da melhor maneira possível para que não caísse. Não poderiam sair pela frente, teriam de tentar escapar pela direção oposta. Ouviu um novo tiro e, em seguida, um zunido baixo acima de sua cabeça. Continuou correndo mais e mais para dentro da escuridão, porém virou os olhos uma vez mais para testemunhar o que ocorria atrás de si.
         De trás da van saía uma segunda criatura, enquanto uma terceira, já de pé sobre a lama que se formava por todo canto, atacava dois capangas ao mesmo tempo, levantando um pelo pescoço e arrancando a mandíbula inferior de outro com a mão livre.
         M. não conseguia pensar neles claramente como homens. Mas também não fazia a menor questão de saber o que eram realmente.
         Os tiros se intensificaram com o desespero de todos na tentativa de controlar a situação. Enquanto fugiam, os dois ouviram o líder esbravejar que ninguém devia fazer mal a seus filhos, entretanto ninguém estava disposto a virar brinquedo ou refeição da porra do filho de louco nenhum.
         filhos? mas que diabos de história é essa? o que é aquilo? por que esses idiotas ficam passeando com aquelas coisas pela cidade, como se fossem bichos de estimação?
         não quero saber. cale a boca e corra, C.
         As balas não pareciam surtir efeito sobre aqueles homens transformados em animais hediondos, pois continuavam a ouvir vários grunhidos ininteligíveis para um ser humano. Nunca antes os haviam trazido até o local de entrega, talvez estivessem no meio de algum tipo de mudança. O que aquelas pessoas fizeram com eles, ou o que eles fizeram para merecer aquela condição de bestas sedentas por sangue, famintas por carne, M. não tinha ideia, mas também não achava que teria alguma mesmo se conseguisse sair vivo dali. Ao menos estava explicado o que aquele sujeito dissera a respeito de seu parceiro virar comida, além do motivo de o terem contratado para assassinar algumas pessoas sem aparente conexão umas com as outras.
         Canibalismo com direito a entrega a domicílio.
         E ele ajudara a alimentá-los tantas vezes.
         Mesmo com todo o seu currículo de matador, não pôde deixar de sentir certo asco de si mesmo.
         Afinal chegaram à parede metálica nos fundos do armazém. Só então M. se lembrou das lanternas que os sujeitos do grupo haviam abandonado durante a confusão. Podiam ter trazido pelo menos uma para ajudá-los na fuga, porém a pressa foi maior. Começaram a tatear à frente de seus rostos, a escuridão era profunda ali. Foi C. quem falou primeiro.
         achei uma maçaneta.
         M. avançou alguns passos para o lado de onde veio a voz do parceiro. Viu uma fresta de luz fraca do luar se alargar cada vez mais pela passagem da porta que C. principiava a abrir, quando parou por puro instinto. O velho instinto.
         Enxergou uma mão esquelética e suja de sangue fresco por cima do ombro do outro, e no instante seguinte C. não estava mais à vista.
         Ouviu seus pedidos de socorro em meio a ruídos altos de mastigação e respiração excitada, além de grunhidos do que poderia ser alguma satisfação da criatura saciando sua fome. M. sabia que não podia fazer nada para ajudá-lo, por isso escapou rapidamente pela fresta. A porta se abriu um pouco mais e a lua então mostrou C. com os olhos piscando ainda conscientemente e a jugular estraçalhada, os lábios tremendo, ao mesmo tempo que um dos homens nus rasgava o terno e a camisa do corpo para puxar e repuxar músculos e veias de seu braço com os dentes agudíssimos. Não pareceu se importar com a presença do sujeito que corria cada vez mais para longe do armazém.
         A chuva não parava de cair, dando a impressão de que engrossava com os minutos. M. não olhava mais para trás e não se importava com a roupa encharcada que ficava pesada sobre seu corpo por conta da água, dificultando um pouco os movimentos. Só queria o quanto antes sair do cais, talvez sair da cidade, esconder-se por um tempo ou para sempre em algum lugar tranquilo onde não conhecesse absolutamente ninguém, onde pudesse tentar esquecer o que vira naquela noite.
         Mas tinha certeza de que aqueles homens viriam atrás do seu rastro. Não eram o tipo de pessoas que o esqueceriam facilmente. Nesse negócio, esquecer o rosto de alguém estava fora de cogitação, e essa era a razão de jamais mostrarem os seus próprios. Obviamente, isso aconteceria apenas se algum deles conseguisse escapar daquelas aberrações. Ainda escutava uns poucos tiros, entretanto vinham de longe, os ecos chegando de três ou quatro armazéns de distância.
         Certamente a polícia apareceria em breve, portanto precisava encontrar outro veículo o mais rápido possível. Provavelmente quem chegasse ali, sem ter a menor noção do que esperar encontrar, teria sérios problemas para voltar para casa. M. não estava preocupado com isso.
         Estava aposentado, e decididamente pensando em parar de fumar.

-FIM-

Oração (de Juliana Calonico)

Trilha Sonora: Canção do Amor (melodia sentimental) - Bidu Sayão, de Heitor Villa-lobos.

Ajoelhada,orava
Em súplicas infantis,pedia
Não me deixe só
Não sei viver sem você

Ele em pé
Ouvia
Sua boca clamando

Calmamente abriu o zíper
E a ela ofertou
Faminta
A boca abriu

Engoliu
Inteiro,intenso
Pulsava

Ela molhada
Sua mão conduziu
Uma fenda

Um ato
Um corpo febril
Disposta a tudo

Nem viu
A porta abriu-se
Puta que pariu ...gritaram

Sacerdote
E fiel

Pegos.

Julho/2011 (de Haroldo Brandão)

Trilha Sonora: Fleetwood Mac
Este parapeito é duro, minha coluna ereta... o céu tão azul, nuvens no meio do mundo. Onde e quando foi mesmo que eu comecei a viver? Podemos passar 2/3 da vida sem nada saber. Se Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor  então eu estou indolor. Naqueles dias, e não foram poucos, eu flutuava em ambientes, como um espectro eu passava e tudo/nada via.
Então veio a luz, um clarão forte como um tsunami mental, acordei e as coisas mudaram, tudo mudou, cada momento passou a ser intensamente vivido, o gosto das coisas mudou e senti um apego forte, como nunca , à vida. Crise dos 50?
Desde então pego nas mãos, com muito medo que caia delas, esta vontade/desejo/ânsia de viver (parece nome de filme). Porque é muito tênue este limite. Se você estiver na Brás de Aguiar próximo a Generalissimo, uma toca o espera, é a teia em que você se enrola e quanto mais mexe mais enrolado você fica.
Sigo assim sem secretos segredos, olhando paisagens que se tornam borrões pois meus olhos ficam marejados. Todos os dias, nos últimos tempos o excesso de novidades empurrados pela mídia, redes sociais, etc. encobrem a mesmice da ordem, caos, ilogicidade e loucura que é o cotidiano. É preciso já estar doido “naturalmente” para não perceber.
Meu apego mais forte tem sido o Amor apesar desta tendência correr riscos pela banalidade tão comum nestes tempos e o uso ideológico indiscriminado.
Assim tão certo quanto o nascer do sol a cada dia é a dúvida que me corrói, em vez de diminuir só piora. Vou teimosamente achando que sou um caso sem solução, uma espécie que desafina o coro dos contentes. Onde exatamente eu entrei na contra-mão? Quem está errado? Este parapeito mantém minha coluna ereta e tenho vontade de voar, para vocês que ficam, até mais, foi bom e ruim enquanto durou.

sábado, 2 de julho de 2011

Achado III (Por Fabio Castro)

Trilha Sonora: Memória da pele – João Bosco / Waly Salomão.

A mesa se acomoda

Conforme os corpos.

E eu, conforme os copos

Os corpos, os copos...