De quem é a culpa?

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A MENINA SEM ESTRELA (de Nelson Rodrigues)





Volto aos meus quatro anos. E, de repente, os cegos apare­ceram. Ou por outra: — antes dos cegos, vi uma menina, de pé no chão. A menina corre, atravessa a rua e vai beijar a mão de um padre. Durante toda a minha infância, na rua Alegre, ha­via sempre um padre e sempre uma menina para lhe beijar a mão. Mas como ia dizendo: — a pequena, dos seus sete anos, voltou para a calçada de cá. A batina continuou e sumiu, lá adian­te, na primeira esquina.
A menina sumiu também, como se jamais tivesse existido. Anos depois, mudamos para a Tijuca, rua Antônio dos Santos (depois seria Clóvis Bevilacqua). Perto de nós, morava o juiz Eurico Cruz e, ao lado, o senador Benjamin Barroso. Eis o que quero dizer: — nos dois ou três anos de Tijuca, não vi um úni­co e escasso padre. Havia uma igreja — e ainda há — na esqui­na de Barão de Mesquita com Major Ávila. Lembro-me da igre­ja, dos santos e não dos padres.
Fiz o parêntese e volto à rua Alegre. Depois que o padre dobrou a esquina, os cegos apareceram. Eram quatro e um guia. Estavam de chapéu, roupa escura, colarinho, gravata, colete, bo­tinas. Juntaram-se na esquina da farmácia e tocaram violino. Não acordeão, não sanfona, mas violino. Saí da janela, fiz a volta e fui ver, de perto, os ceguinhos. Eram portugueses. E o curioso e que, por muitos anos, só conheci cegos portugueses. Brasilei­ro, nenhum.
Fiquei ali, na esquina, em adoração. E os cegos — todos de chapéu — tocaram uns vinte minutos. Lembro-me bem: — um deles tinha, atravessando o colete de um bolso a outro bol­so, uma corrente de ouro. No fim o guia passou o pires. Cada um pingou seu níquel. E, então, voltei correndo para casa. Não falei com ninguém, meti-me na cama. Minha vontade era mor­rer. Fechei os olhos, entrelacei as mãos, juntei os pés. Morrer. Minha mãe entrou no quarto; pousou a mão na minha testa: — “O que é que você comeu?”. Comecei a chorar, perdido, per­dido.
E, de repente, uma certeza se cravou em mim: — eu ia fi­car cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era vontade de Deus. Mas falei em quatro anos. Engano, engano. Eu tinha seis anos e não quatro. Nasci em 1912 e isso aconteceu em 1918, na es­panhola e antes da espanhola. Tenho certeza: — seis anos. Nunca mais me esqueci dos cegos e posso repetir, sem medo da ênfa­se: — nunca mais. Mas por que, meu Deus, por que pensava neles, dia e noite? Pode parecer uma fantasia de menino triste. E se disser que, já adulto, homem feito, a obsessão continuava intacta? Obsessões, sempre as tive. Mas essa nunca me abando­nou. Aos trinta anos, 35, quarenta, eu sonhava com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva.
Quando minha família já ia sair de Aldeia Campista para a Tijuca, aconteceu o seguinte: — um menino, que brincava muito comigo, apanhou um canário e picou com o alfinete os olhos do passarinho. Eu me senti, eu, aquele canário de olhos fura­dos. E me imaginei cego, em casa, vagando por entre mesas e cadeiras. Meninas, senhoras, visitas teriam pena de mim, amor por mim. Na rua, diriam: — “Naquela casa, mora um menino cego”.
Mas quando mudamos para a Tijuca, já não estava tão cer­to se seria mesmo eu o cego. Podia ser minha mãe, ou um dos meus irmãos. Talvez Roberto. Milton, não, nem Mário. Sempre imaginei que meu pai, jornalista de fúrias tremendas, morresse, um dia, assassinado. Já minha mãe tinha um problema de visão. Mas fosse eu, minha mãe, meu irmão, alguém ficaria cego, al­guém. Eis a verdade: — ano após ano, me convencia de que os cegos do violino insinuavam um vaticínio. Meu Deus, não fora por acaso que, um dia, quatro cegos tocaram embaixo de minha janela, ou pertinho de minha janela. Tocavam para mim, não para os outros, não para ninguém, tocavam para um meni­no de seis anos.
Até os dez anos, doze, não tive medo da treva. Houve um momento em que teria a vaidade de ser o único menino cego da rua Mas o tempo foi passando. E o pavor veio com a idade. Adulto, eu não fazia mistério: — “Se eu ficar cego, meto uma bala na cabeça”. Não “uma bala na cabeça”; daria um tiro no peito como Getúlio. Ah, Getúlio estourou o coração mas pre­servou sabiamente a cara para a História e para a lenda. Pelo vidro do caixão, o povo espiou o rosto, o perfil intactos. Kennedy, não. A bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. Tiveram que fechar o caixão. O povo precisa ver o seu líder morto. Nada, nem medalha, nem estátua, nem cédula, nem se­lo substitui o último rosto, o rosto morto.
Muitos anos depois, conheci Lúcia. Lembro-me de que, nu­ma de nossas conversas, falei-lhe assim: — “Desde criança, te­nho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu...”. Fiz a pausa e completei: — “...eu meteria uma bala na cabeça”. Isso era e não era uma agressão sentimental, uma espécie de terro­rismo. Afinal, o amoroso é sincero até quando mente. No fun­do, no fundo, as minhas palavras queriam dizer outra coisa, ou seja: — “Mesmo cego, eu viveria se você me amasse”. Por ou­tro lado, sei que não é normal essa fixação numa fantasia infan­til. Mas não tenho medo de confessar a minha morbidez, nem ela me envergonha. Eu a compreendo e a recebo como uma gra­ça de Deus.
Mas estas notas não estariam completas, se eu não lhes acres­centasse uma explicação. Quero dizer que o medo de uma cegueira utópica, apenas sonhada, me tornou humanamente melhor. Ou, se não me tornou melhor, me deu a vontade obsessiva de ser bom. Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance com Lúcia. Pouco a pouco, fui dizendo as coisas que são tudo para mim: — “Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor”. E dizia: — “Quem nunca desejou morrer com o ser amado não amou, nem sabe o que é amar”. As nossas conver­sas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade. Quando nos casamos, eu lhe disse: — “Nem a morte é a separação”. Ela concordou que na­da é a separação.
Depois, a gravidez. Ah, quando eu soube que ela só podia ter filho com cesariana. Não me falem em fio de navalha. O fio da navalha é um título de romance ou de filme. Mil vezes mais frio, e diáfano, e macio, e ímpio, é o fio do bisturi da cesariana. O marido, cuja mulher só pode ter filho com cesariana, terá de amá-la até a última lágrima.
 “Se for menina, o nome é Daniela”, disse Lúcia. Achei um nome doce e triste (gosto dos nomes tristes) de personagem de Emily Brontë. Uma noite, Lúcia foi internada, às pressas, na Ca­sa de Saúde São José. Parto prematuro. Minha mulher chega com dr. Cruz Lima e d. Lidinha. Dr. Marcelo Garcia e dr. Silva já es­tavam lá. Foi uma correria de médicos, enfermeiras, irmãs. Dr. Waldyr Tostes ia fazer o parto.
Naquela noite, pensei muito no staretz Zózimo. Sim, na sua bondade absurda, senil e terrível do personagem dostoievskiano. Há um momento em que somos o staretz Zózimo. Dr. Mar­celo Garcia era o staretz, e o dr. Silva Borges, e o dr. Waldyr Tostes. Dr. Cruz Lima também era o staretz Zózimo. Tudo acon­teceu numa progressão implacável. Daniela nasceu e não que­ria respirar. Dr. Marcelo Garcia fazia tudo para salvar aquele so­pro de vida. De manhã, quase, quase a perdemos. A irmã, de­sesperada, batizou minha filha no próprio berçário. Dr. Cruz Li­ma, dr. Marcelo, Silva Borges lutaram corpo a corpo com a mor­te. Mudaram o sangue da garotinha. E ela sobreviveu.
Lúcia quis ver a filha no dia seguinte. E veio numa cadeira de rodas, empurrada por d. Lidinha. Voltou chorando, e dila­cerada de felicidade. Também fui espiar Daniela pelo vidro do berçário. Uma enfermeira aparece e me pergunta, risonhamente: — “O senhor é o avô?”. Respondi, vermelhíssimo: — “Mais ou menos”. Mais uma semana, Lúcia e Daniela vinham para ca­sa. Tão miudinha a garota, meu Deus, que cabia numa caixa de sapatos.
Dois meses depois, dr. Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha, fez todos os exames. Meia hora depois, desce­mos juntos. Ele estava de carro e eu ia para a tv Rio; ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No caminho, foi muito delicado, teve muito tato. Sua compaixão era quase imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

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